Uma caixa repleta de papéis amarelados com textos em alemão, que estava prestes a ser queimada pela proprietária, despertou a atenção da agricultora Diva Hillebrand, então com 40 anos, no interior de Nova Petrópolis, na serra gaúcha. Era final dos anos de 1980 e Diva se interessou pelos manuscritos redigidos no antigo alfabeto gótico, guardados até então por sua avó Maria Jahnel, que jamais comentara sobre o conteúdo.
Ao tentar decifrar os textos, a agricultora descobriu tratar-se de longos desabafos de uma mãe alemã tomada pela saudade do filho mais novo, desde a partida dele para morar no Rio Grande do Sul, no final no século 19. A autora das cartas, Maria Anna Jahnel, era a trisavó de Diva.
Os textos descobertos ao acaso pela agricultora trouxeram à tona uma dolorida história de um amor que ultrapassou décadas e distâncias. Hoje, Diva, com 75 anos, e o filho Hugo Hillebrand, 56 anos, são os responsáveis por contar aos turistas que visitam a pousada Verde Paraíso, em Nova Petrópolis, da qual são proprietários, a história dos parentes imigrantes europeus que adquiriram em 1886 as terras pertencentes até hoje à família.
A busca por uma vida melhor no Brasil
Em 1877, o empresário Eduard Jahnel, 44 anos, partiu do então Reino da Boêmia, hoje República Checa, com o filho Heinrich, 14 anos, rumo ao Brasil para tentar uma vida melhor. A intenção era, em um segundo momento, buscar a mulher, Maria Anna, com quem era casado havia 25 anos, e os outros três filhos do casal, Maria, Frans e Josef.
Depois de navegarem longos meses pelo Atlântico, Eduard e o filho passaram a morar no interior de Nova Petrópolis, onde se tornaram agricultores. Apesar de muito trabalho, Eduard não conseguia ter condições financeiras suficientes para reunir a família novamente. As cartas, então, passaram a ser a única forma de contato entre os Jahnel.
Com o passar dos anos, Maria Anna e os três filhos enfrentaram dificuldades financeiras profundas por conta da guerra que se aproximava na região. A explosão da Primeira Guerra Mundial definiu, de vez, os rumos da família. Maria Anna e os três filhos começaram a mudar de endereço inúmeras vezes, perdendo o contato com Eduard e Heinrich. Convocado para a guerra, Frans, um dos filhos do casal, morreu em combate. Sem qualquer resposta da família por anos, imaginando que poderiam ter morrido na guerra, Eduard se casou novamente no Brasil.
Anos mais tarde, Maria Anna voltou a contatar por carta o filho Heinrich e compreendeu a situação do ex-marido. O que importava para ela era saber como estava o caçula do qual jamais esqueceu.
— Ela carregou para sempre uma dor enorme por não poder rever o filho. Aqui, os que vieram depois não falavam da história porque ela era triste demais. As guerras separaram a família para sempre, mas me sinto muito honrada por ter encontrado a história — conta, com os olhos marejados, Diva, que começou a fazer encontros nacionais da família Jahnel a partir da descoberta.
Em uma carta escrita pela irmã de Heinrich, durante a Segunda Guerra Mundial, relata a confissão da tristeza de Maria Anna: "Meu querido irmão, tu nem sabes o que a mãe está sofrendo, me dói na alma ver a mãe sofrendo em deixar o filho. Os nossos desejos são sempre se nós, um dia, tivermos dinheiro vamos visitar o nosso Heinrich. E a mãe sempre diz 'eu também vou junto, não tenho medo do mar imenso'".
No Brasil, o filho deu 10 netos a Maria Anna, entre eles, Maria Jahnel Lüdtke, avó de Diva. Naquela que a agricultora acredita ter sido a última carta escrita, a trisavó alemã, já com mais de 90 anos, fala ao caçula sobre a saudade, mas também sobre a alegria de poder ver as fotos dos netos brasileiros: "E eu chamo muitas vezes você aqui comigo em pensamento. Isto ainda me dá ânimo de viver se eu leio de novo as cartas e olho as fotos... Eu sempre desejo, ao menos uma vez, falar pessoalmente, mas isto nunca, só na eternidade. Tu podes acreditar, que tu vais dormir comigo e levantar comigo em pensamento".
A última carta encontrada por Diva data de 1952 e foi escrita pela filha de Maria Anna. Nela, há o relato de a mãe estar doente. A agricultora não sabe se depois desta carta houve mais algum contato. As mensagens encontradas em Nova Petrópolis foram traduzidas por uma professora de alemão e reescritas em português. Apenas uma foi apresentada à reportagem, mas a agricultora relata que um dos desejos da trisavó era que, um dia, a família, mesmo que fossem gerações futuras, se reencontrasse.
Gerações depois, novas cartas
Em 2005, uma repórter da DW, empresa pública alemã de jornalismo, esteve em Nova Petrópolis produzindo uma reportagem sobre a imigração. Na época, conheceu a origem da família. Antes de retornar à Alemanha, ela prometeu investigar o paradeiro dos Jahnel na Europa. E cumpriu. A repórter localizou no vilarejo de Weißenburg in Bayern, a cerca de 400 km de Frankfurt, um bisneto de Josef, filho de Maria Anna e Eduard. Ele confirmou a história da família, mesmo com poucas informações passadas entre as gerações. As cartas da alemã que partiu para sempre sem conseguir rever o filho mais novo atestam que não há distância no mapa e nem tempo que consiga separar o amor de uma mãe por um filho.
Ao saber que tinham laços sanguíneos distantes na Alemanha, Diva e Hugo começaram a se comunicar por carta com o parente. Em 2015, 10 anos depois da retomada da correspondência entre os descendentes, os dois viajaram à Europa para conhecer os outros integrantes da família e também o lugar onde os Jahnel viveram antes de se separarem. Quase 140 anos depois, o desejo de Maria Anna havia se cumprido.
Confira aquela que é considerada a última carta de Maria Anna para o filho Heinrich
"Querido filho Heinrich e esposa
A tua carta eu recebi com muita alegria, e quando eu a li, vi que ia receber tantas fotografias, você pode imaginar a emoção. Daí veio a Marie correndo e disse: Mãe, uma carta do nosso Heinrich! Eu estava no momento muito triste e desiludida, mas daí a tristeza tinha sumido. Isto foi na quinta quando veio a carta e domingo já veio o pacote com as fotos.
Isto não só era alegria pra nós, mas todos os que te conheciam e se alegraram e perguntaram de você e se admiraram da sua família. Nas vestes não tem tanta diferença lá e aqui. O vizinho Konrad Bauer ficou tão contente quando a Marie foi lá correndo contar que veio uma carta de você Heinrich.
Querido Heinrich, agora eu tenho que contar da última carta. As duas cartas se encontraram no caminho, eu esperei a tua e tu a minha. Eu recebi as fotografias da tua querida filha Maria e dos dois filhos dela, Otto e Ida. Eu fico feliz com isto.
E eu chamo muitas vezes você aqui comigo em pensamento. Isto ainda me dá ânimo de viver se eu leio de novo as cartas e olho as fotos.
Agora eu tenho que te perguntar, o teu filho Kal foi morar tão longe de você, o que ele trabalha?
Eu recebi todas as cartas que você escreveu meu filho, da primeira até a última. Querido filho Heinrich, tudo pode ficar desanimado e com saudade esperando a nossa carta. Quando eu recebi a tua 1ª carta eu pensei que tu nunca ias ficar lá. Isto nos assustou muito.
Já eram 25 anos que tínhamos casado, e quando vocês foram embora, eu tinha dívidas para pagar. E assim se passaram 8 anos. Depois trabalhei mais 16 anos quando fiquei cansada. Mesmo assim consegui pagar tudo, mesmo sozinha.
Na próxima carta você vai receber fotos da filha do Frans, a Berta, que se casou em outubro. Ela foi morar em Wöhrsdorf bei Haida. O marido dela trabalha na fábrica de vidro e o teu irmão Josef também. O Emil também estava aqui no casamento. Ele tem um cargo mais alto agora. O último treino com arma foi em setembro. Ele tem uma filha de dois anos. O Josef só tem uma filha Emilie e ela tem um filho Bruno. Marie, a pequenininha, só tem o Hugo, que tem 8 anos.
Querido filho Heinrich, agora que te escrevi umas coisas da nossa família, eu posso imaginar que tu talvez não podes entender muitas coisas, porque já passam tantos anos que tu nos deixaste. Tu talvez deves te lembrar quando tu estavas aqui eu já tinha muita dor no braço. Por causa disso eu estou tremendo tanto, quase impossível escrever e é difícil colocar no papel tudo o que eu tenho para te dizer.
Eu sempre desejo, ao menos uma vez, falar pessoalmente, mas isto nunca, só na eternidade. Tu podes acreditar, que tu vais dormir comigo e levantar comigo em pensamento. E se eu um dia não estiver mais aqui, a Marie e o Josef vão informar de tudo.
Da sua eterna mãe, Maria Anna Jahnel"