Um brasileiro pode se espantar com alguém que define o país como lugar seguro e dá graças ao chegar por aqui. Para quatro afegãos que desembarcaram em Santa Cruz do Sul na segunda-feira (11), a tumultuada jornada desde Cabul representa, enfim, o objetivo tão almejado desde que os extremistas do Talibã retomaram o poder no ano passado: agora, a família está salva.
A cidade do Vale do Rio Pardo é a primeira do Rio Grande do Sul a receber afegãos com visto humanitário, concedido pelo governo federal, devido à situação de “grave violação de direitos humanos”. Com a retirada total das tropas norte-americanas do Afeganistão, em agosto passado, depois de 20 anos, e o medo do restabelecimento de um regime de opressão e terror, mais de 2,6 milhões de cidadãos foram forçados a abandonar tudo apenas em 2021, de acordo com a Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados (Acnur).
O grupo é formado por duas mulheres na faixa de 20 e 30 anos, primas, e os dois filhos adolescentes de uma delas. Solicitou-se à reportagem que não fossem divulgados nomes, vozes e imagens que permitissem a identificação dos rostos por medo de que os familiares que ficaram no Afeganistão sofram represálias e tenham moradias destruídas.
A porta-voz da família é a mãe, com domínio suficiente do inglês. Quando falta vocabulário, um dos recursos é recorrer a tradutores online para verter palavras e expressões a partir do farsi, o idioma nativo. Ela fala da notável melhora na qualidade de vida de que a parcela feminina da população conseguiu usufruir em duas décadas, mas agora o retrocesso é implacável: mulheres não podem estudar ou trabalhar, têm dinheiro confiscado, sofrem violência física e psicológica e são forçadas a testemunhar crimes brutais, como estupros e pessoas sendo queimadas com óleo fervente.
— Tive de me esconder. Se o Talibã me encontrasse, eu seria presa ou morta. Estava morrendo até trocar de número de celular e endereço — recorda a advogada de 34 anos, militante pelos direitos das mulheres que conseguiu se divorciar do marido, usuário de drogas. — Éramos felizes antes do Talibã. Eu podia trabalhar, as crianças tinham uma boa escola, mas tudo mudou. Passei três meses escondida.
A formação em Direito das duas refugiadas permitiu que se beneficiassem dos esforços de um movimento iniciado no Brasil para proteger magistradas afegãs. No WhatsApp, o grupo SOS Mulheres Afegãs foi crescendo e se diversificando. Com o envolvimento do Superior Tribunal Militar, da Associação Internacional de Magistradas, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), de ONGs no Exterior e de uma série de outras instituições e interessados, estabeleceu-se uma cadeia de contatos para viabilizar documentos, passagens aéreas e locais de destino de quase uma centena de afegãos até o momento. O foco se ampliou, beneficiando também homens e profissionais de outras áreas.
Tive de me esconder. Se o Talibã me encontrasse, eu seria presa ou morta. Estava morrendo até trocar de número de celular e endereço
REFUGIADA AFEGÃ
Sindy Nobre Santiago, advogada de São Paulo engajada com voluntariado, recepcionou os viajantes também em Santa Cruz, auxiliando-os nos primeiros dias de ambientação. Contagiada pelo envolvimento da filha Sophia, 19 anos, estudante de Direito interessada no tema do tráfico de pessoas que criou a ONG Panahgah, Sindy faz contatos pelo mundo, destrava burocracias, recebe os estrangeiros, abraça-os no portão de desembarque da terra desconhecida.
— Não adianta tirar as pessoas do Afeganistão e não ter onde botar. Queremos que tenham uma vida digna aqui — diz Sindy. — O Brasil tem a capacidade de acolher, tem pessoas empáticas, mas estamos nos tornando um país individualista. Ainda temos raízes acolhedoras nas cidades do Interior. Não adianta falar com o presidente, o governador, são os moradores locais que acolhem. E o Rio Grande do Sul é um Estado de imigrantes.
Ricardo Hermany, diretor de cursos especiais na Escola de Advocacia da OAB e professor da pós-graduação em Direito na Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), onde as afegãs devem cursar mestrado e aulas de português, complementa:
— A ideia é não criar guetos. Preservando e respeitando o multiculturalismo, a diversidade, recebê-los e integrá-los na nossa comunidade.
Para o quarteto que desembarcou em São Paulo no final de março após uma custosa saída do Paquistão, serão destinados cerca de R$ 6 mil mensais, remetidos por uma ONG dos Estados Unidos, durante 18 meses. Cada núcleo familiar fica responsável pela gestão do dinheiro, com o objetivo de que conquistem autonomia e possam fazer suas próprias escolhas, sem depender de apoio para tudo.
O Brasil tem a capacidade de acolher, tem pessoas empáticas, mas estamos nos tornando um país individualista. Ainda temos raízes acolhedoras nas cidades do interior. Não adianta falar com o presidente, o governador, são os moradores locais que acolhem. E o Rio Grande do Sul é um estado de imigrantes
SINDY NOBRE SANTIAGO
ONG Panahgah
Enquanto avaliam apartamentos para alugar, os afegãos estão hospedados em uma casa de passagem que acolhe mulheres vítimas de violência. Receberam a equipe de GZH na sala, com afetividade e simpatia, apesar das restrições impostas para a entrevista. As mulheres cobriam a cabeça com lenços e vestiam blusas de manga compridas e calças — não fosse o homem estranho no local, poderiam ter ficado mais à vontade, de cabelos à mostra. Sem medo de errar, os irmãos já se aventuram pelo novo idioma.
— Hola, tudo bem? Como está? E você? — começa o garoto de 13 anos, confundindo-se com uma saudação em espanhol. — Cama, cadeira, telefone, sofá, forno, banheiro, porta, um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, 10, unha, dedo, mão, dado, cabelo, boca, nariz, hoje, água, suco — dispara o entusiasta de críquete que já escolheu torcer para o Santa Cruz Futebol Clube e pretende se graduar em Engenharia.
A irmã, de 15 anos, também exercita a fluência possível das semanas iniciais, nomeando o que observa ao redor e repetindo, para o riso geral, a frase que resume sua mais urgente necessidade:
— Você tem wifi aqui?
Um vizinho concordou em fornecer a senha da rede de internet para que os recém-chegados pudessem checar suas mensagens e contatar quem ficou para trás. A menina também sabe se apresentar, falar a idade e que é “afegão”, esbarrando na flexão de gênero. Logo emenda uma informação que revela muito sobre sua origem e tradição, em que os casamentos são arranjados bem antes da idade adulta:
— Eu não marido.
O maior anseio da mãe é que os filhos retomem os estudos em breve. Orgulha-se da inteligência dos dois, conta que “só tiravam nota A”. Quer aprender português, ir para a universidade. Não faz planos de retorno ao país natal.
— Estou feliz. Quero ficar aqui — diz a líder do grupo.
— Para sempre — acrescenta a filha.
— Nunca voltar? — espanta-se a mãe, apesar de compartilhar o desejo de permanecer.
Questionada se acompanha o noticiário sobre o Afeganistão, a advogada se emociona e afirma que está a par do que acontece a todo momento.
— Sinto muita saudade. Choro todos os dias. É um país tão lindo.
Culturas tão distintas provocam as estranhezas habituais, especialmente quanto ao clima e à comida. No geral, os quatro afegãos classificam os brasileiros como gentis. Faz calor demais. O café é ruim, e o arroz também — o arroz afegão é muito melhor. Feijão preto, nem pensar, eles gostam é do branco. Tomam chá gelado, às vezes com leite, e Coca-Cola em temperatura ambiente. Em meio à fartura de pacotes de bolachas levada à casa de passagem, pediram a Sindy para ir ao mercado comprar vegetais.
Os primeiros dias no Estado já permitem contabilizar conquistas. O garoto está matriculado em uma escolinha de futebol, e há a perspectiva de as primas conseguirem emprego em uma grande empresa da cidade.
— Tudo está melhor agora, mas é muito diferente. Precisamos nos acostumar. Vamos começar uma vida nova, sem medo — afirma a mãe.