Por Jorge Barcellos
Doutor em Educação (UFRGS), autor de “O Êxtase da Direita” (Clube dos Autores, 2021)
Volta e meia vemos na imprensa ataques ao serviço público que defendem o status quo neoliberal através da produção do ódio social contra o servidor público. O objetivo é derrubar o último refúgio de garantia do Estado, a estabilidade. O mainstream neoliberal defende uma cidadania reduzida e privada de direitos, o que inclui a segurança que a estabilidade do serviço público proporciona e que contraria o princípio de flexibilidade do trabalho que sustenta a exploração capitalista.
Depois de impor sua razão destrutiva no universo do trabalho em geral, o neoliberalismo volta-se para impor sua razão destrutiva no universo do serviço público: agora terceirização, informalidade e flexibilização devem fazer parte do projeto para a construção de um serviço público pior, mais fraco e insuportável para o cidadão, que passará a defender o mercado, mais da velha lógica do “desmontar para privatizar”. O desejo de flexibilizar o serviço público é um imperativo do capital para um mundo sem direito algum, inclusive o de fazer greves, considerado um abuso. Essa inversão desrespeita os servidores públicos que estiveram no front de combate ao coronavírus durante dois anos; eles não estavam num “camarote”, mas junto com policiais, médicos, entre tantos outros, exercendo suas funções apesar da pandemia. O discurso neoliberal quer ser a régua moral que define qual é o Estado necessário e qual não é e seu problema é se basear na opinião e no menor custo e não na história da função pública, no real valor do trabalho público e no processo de luta pela criação de planos de cargos e salários dignos. Sabemos que 50% dos servidores públicos recebem até R$ 2.727 e dois terços desse total é formado por servidores municipais cujos salários não passam de R$ 1.300, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) para 2018. Onde estão os milionários, cara pálida?
A filósofa Judith Butler afirma que somos feridos pela linguagem. A mulher, o negro, o índio, os integrantes do movimento LGBTQIA+ e também os servidores públicos, todos necessitam da linguagem para existir, e a primeira forma de injúria que se pode fazer a qualquer um deles é “ser chamado de algo”. A mais nova é chamar os servidores públicos de “los invictos”, o que, na minha interpretação, é um discurso injurioso. Ofende servidores dedicados, é equivocado em seu endereçamento que faz com que toda uma categoria de trabalhadores que prestaram concurso público seja menosprezada e humilhada e desconhece a história e os motivos de sua instituição. Há no Brasil estabilidade na função pública desde 1915, algo assumido pelas demais Constituições.
O motivo é a necessidade de garantir ao servidor que ele não perderá sua função se vier a sofrer pressão superior. Sua necessidade ficou clara no caso do servidor público Luis Ricardo Miranda, que denunciou irregularidades no contrato entre Bharat Biotech no Ministério da Saúde na CPI da Covid. Frente às ameaças que recebeu, a lei o protegeu e ele denunciou as irregularidades.
Para a direita, é fácil transformar direitos em objeto de ódio, afinal, todos sonham com o que os outros têm. O discurso neoliberal é contra qualquer valorização de diferenças e competências individuais, planos de carreira e vantagens obtidas na luta dos servidores públicos como categoria social. Numa palavra, é contra o direito do trabalho. Ao invés de combatermos os salários que ultrapassam os limites legais, agora todos os salários de todos os servidores tornam-se objeto de comparação. A manipulação está em fazer o cidadão comum comparar seu salário estabelecido pela exploração do capital, impeli-lo a agir emocionalmente a tratar o servidor público como inimigo, o que Francesco Alberoni denomina de “confronto invejoso”, que corrói a sociedade e desmerece os funcionários que querem um serviço público melhor.
Não nos enganemos: los invejosos estão por todo o lugar. Eles defendem uma agenda pública baseada na inveja que desvia a atenção da sociedade de suas reais necessidades, faz do servidor público o bode expiatório dos problemas criados pelo capitalismo com uma falsa contabilidade de méritos e recompensas. Precisamos menos de Daniel Passarella e mais de Paolo Sollier, conhecido como Ho Chi Minh e que jogava na Cossatese, equipe da Série C do futebol italiano nos anos 1970. Ele trabalhou como operário numa fábrica nos anos de chumbo italiano, estudou Ciências Politicas e dava parte de seu salário para um coletivo leninista. Tinha fama de revolucionário e nunca escondeu que queria mudar o mundo pelo futebol, chegando a dar livros de García Márquez para seus colegas. Chegou a escrever, em dedicatória: “Não se vive só de futebol”.