Por André Cauduro D’Angelo
Mestre e bacharel em Administração pela UFRGS e docente na PUCRS
Quando ainda era treinador de futebol, Daniel Passarella, comandante da Seleção Argentina na Copa de 1998, costumava se referir aos integrantes da imprensa esportiva como “los invictos”. Não importavam as circunstâncias do jogo ou o resultado de campo, repórteres e comentaristas sempre saíam por cima, ditando regras e construindo teses respaldadas pela mais perfeita engenharia de obra pronta.
O Brasil também tem seus invictos, e não apenas nas cabines de rádio e televisão dos estádios. Há uma categoria de brasileiros que não sabe o que é derrota, independentemente do que aconteça nas quatro linhas onde o país disputa seu destino todos os dias: os funcionários públicos.
Entre 2012 e 2020, a economia brasileira não cresceu. O desemprego atingiu patamares recordes e o PIB per capita teve evolução negativa. Fosse um jogo de futebol, o país teria saído de campo derrotado, ou na mais condescendente das hipóteses, com um empate sofrido e amargo. Mas houve quem pudesse comemorar uma vitória acachapante – a sua, particular, e não a do time.
No mesmo período, os funcionários públicos viram sua renda real crescer em média 13,1% (estatutários) e 20,4% (carteira assinada), enquanto no setor privado o índice foi de módicos 7,1%. Nesses oito anos, os salários percebidos foram 76% e 91% acima de seus homólogos da iniciativa privada, respectivamente. Isso tudo, claro, sem sequer ver ameaçada a condição precípua da estabilidade no emprego, aquela que, por si só, garante que não haverá derrotas, quaisquer que sejam os adversários e as adversidades enfrentados.
E que volta e meia serve de salvo-conduto para pressionar o árbitro de ocasião a atender seus reclamos sem risco de expulsão, sob a forma de operações-tartaruga, entrega de cargos ou da mais pura e simples paralisação das atividades, como as que acompanhamos há pouco e há muito. A sociedade é um refém fácil e tentador.
Nem mesmo a mais excepcional das crises, a pandemia de 2020-2021, mexeu nos “direitos adquiridos” de los invictos. Redução de carga horária e correspondente redução de vencimentos, em período de arrecadação em queda? Não. Irredutibilidade salarial é princípio constitucional. Enquanto o setor privado fazia das tripas coração para sobreviver à interrupção da produção e ao fechamento do comércio, o funcionalismo público assistia à hecatombe econômica de camarote, como se o que ocorresse no gramado não fosse com ele.
E não era, mesmo. A vida na área vip vicia os parâmetros de avaliação, que deixam de ser os do mundo lá fora e passam a ser os dos companheiros de bolha. Municipários invejam servidores estaduais, que olham com ciúme para os federais; integrantes do Executivo lamentam não estar no Legislativo, que por sua vez preferiam o Judiciário. A cadeia de comparações dentro do cercadinho distorce a noção de realidade.
As consequências da existência de uma camada de invictos vão além das gerações perdidas para a segurança sedutora do serviço público. Historicamente, residiam na antipatia do empresariado e dos empregados da iniciativa privada, obrigados a amargar diuturnamente empates e derrotas, enquanto viam os vencedores de sempre mal colocarem o pé em dividida. Mais recentemente, refletem-se na desconfiança crescente da classe média emergente em relação à esquerda, tão pronta a apontar distorções, desequilíbrios e desigualdades do mercado, mas cega a distorções, desequilíbrios e desigualdades gerados pelo próprio Estado.
O mais grave fruto, contudo, foi criar em parte da elite brasileira uma aversão a tudo o que venha do Estado. Não por acaso, boa parte do capital produtivo e improdutivo brasileiro tem Margareth Thatcher como ídolo, e a viu encarnada num privatista desvairado como Paulo Guedes. A falta de noção do Estado necessário e do dispensável, das garantias razoáveis e dos privilégios descabidos, já se perdeu no caldo do ressentimento.
O Brasil terminou 2021 atrás no marcador: inflação de 10%, crescimento estimado em menos de 5%, desemprego na casa dos 11%. As perspectivas para 2022 não são lá muito melhores: IPCA de quase 7%, crescimento de 1,5%, desemprego de 11,6%. Mas, quando dezembro chegar e o placar desse jogo estiver definido, dando fim às hipóteses e às especulações costumeiras, nem eu, nem você, nem Passarella teremos dúvida de quem terminou mais um ano sem perder.