Quanto sofrimento cabe em uma família?
Conversei com a enfermeira Elizandra Pereira Cunn, 41 anos, em maio de 2021, meses depois da morte do pai e da mãe por complicações da covid-19. Entre tantas tragédias da pandemia, a dela me tocou, especialmente, pelo intervalo de tempo: Eliz e as irmãs perderam José e Maria em apenas duas semanas, em 2020. Eliz morreu neste domingo (24), atropelada pelo próprio carro — o caso está em investigação pela polícia.
A reportagem, publicada em Zero Hora e GZH em junho do ano passado, mostrava profissionais de saúde que enfrentavam, também na esfera doméstica, o pior da crise do coronavírus. Eliz foi uma das entrevistadas, relatando o drama da internação simultânea do casal: no mesmo dia, no mesmo quarto de enfermaria do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
Depois de a mãe piorar e ser transferida para a UTI, Eliz permaneceu ao lado do pai, como acompanhante. Não se alimentava, passou três dias e três noites sem dormir, não levava mais de um minuto no banho — tudo para não deixá-lo sozinho. Cantou para ele. Um enfermeiro teve de adverti-la de que, naquela situação, ela não era enfermeira, era filha. Precisava cuidar de si mesma também.
Apoiada pela chefia e pelos colegas do Hospital Moinhos de Vento, onde trabalhava, Eliz pôde decidir quando retomar as atividades. Uma semana depois de enterrar o pai, voltou ao trabalho. Rejeitou apoio psicológico, mas procurou uma médica para falar do que o corpo sinalizava: a perna gelada, o coração acelerado, a respiração curta. Tinha medo de também morrer.
A enfermeira buscou conforto no dia a dia da profissão e nos bichos de estimação. Era apaixonada por cães e gatos, como o pai. Para a reportagem, foi fotografada junto de alguns deles, na casa onde viveu com seu Zé e dona Maria por quatro décadas. Passada a entrevista, seguiu me mandando fotos dos pets. Viramos “amigas de Instagram”. Postava imagens na praia, em shows, passeando nas folgas, celebrando a alta de pacientes.
Na tarde de domingo, Eliz foi atingida pelo seu automóvel, que bateu contra o portão da casa do namorado, em Gravataí. De acordo com o companheiro, ela se atrapalhou com os pedais ao descer do veículo e provocou o acidente. Socorrida pelo Samu, a enfermeira não resistiu.
Quando soube do falecimento, na manhã desta segunda-feira (25), voltei a pensar na pergunta da abertura deste texto.