Beijos e lambidas da akita Zoe cessam quando as mãos de quem oferece carinho se aproximam do seu pescoço. A cachorra, de porte médio e estimados quatro anos de idade, não gosta de ser tocada na nuca. Revira a cabeça e se afasta, desconfiada.
Não é preciso ser veterinário comportamental para compreender tal desconforto: a mascote foi atacada com golpes de facão e quase terminou degolada.
— Foi muito triste. Estou aqui há cinco, seis anos, e nunca tinha visto isso. Achei que a gente estava trazendo ela pra morrer — relembra o motorista Sérgio Antônio Ramos, 61 anos, que transportou o animal até a sala de cirurgia.
A tentativa de esquartejamento ocorreu em Novo Hamburgo, no Vale do Sinos, no último dia 7. O autor do crime foi um idoso, de 61 anos, preso em flagrante enquanto deixava o matagal com a faca usada como arma. Confessou o ato para a Brigada Militar, com o pífio argumento de que estava sacrificando a cadela para interromper um suposto câncer — veterinários do município descartam qualquer tumor e afirmam que ela está em plenas condições de saúde.
Os maus-tratos não continuaram graças a um trabalhador do bairro Roselândia. Ele ouviu os ganidos, intercedeu no mesmo momento e acionou a polícia e a Guarda Municipal.
— É um belo exemplo o dele. Muitos ignoram, acham que não é um problema seu. O homem até hoje liga pra cá querendo saber como ela está — afirma a diretora do canil municipal, Fátima Ferreira, 49 anos.
Fátima integrou a equipe de socorro e adentrou a mata para o resgate. Em entrevista à Rádio Gaúcha, na manhã desta sexta-feira (18), a servidora chorou ao relembrar de como encontrou a cachorra.
— Ela estava agonizando, porque perdeu muito sangue. Levantou a cabeça, olhou e deitou de novo. Mas ela é muito guerreira — diz, emocionada.
Foram quase três horas na mesa de cirurgia, para limpar os profundos cortes, estancar o sangramento e costurar os pontos.
Responsável pelo inquérito, o delegado Alexandre Quintão, da 3ª Delegacia de Polícia de Novo Hamburgo, afirma que o idoso será indiciado pelo crime de maus tratos. O delito pode ser punido com prisão de dois a cinco anos. No mesmo dia em que foi detido, a Justiça concedeu liberdade provisória ao investigado.
Carinho e adoção
Zoe foi batizada pelos dez funcionários do canil. Mas tem quem a chame de Kita, Branca, Mimosa, entre outros carinhosos apelidos. A raça do animal gera igual divergência: a aparência é de uma akita, mas há uma nova definição, “aki-lata”, pela provável cruza com vira-latas.
Indiferente ao pedigree, ela ganha atenção, sachê de ração úmida e grãos premium para recuperar a força no amplo e arborizado pátio do abrigo no bairro Lomba Grande. Deita sob a sombra das folhas de uma figueira centenária, onde devolve os afagos.
— Zoe é um amor, todos aqui gostam. Tem até uma lista — diz empolgada a auxiliar administrativo Kisse Luana Delgado, 35 anos, mostrando os nomes do time de veterinários, estagiários, servidores administrativos e da companhia municipal de urbanismo.
Depois de estar 100% recuperada, a xodó da fazenda será castrada. Começará, então, a seleção de adoção.
— Tem que ser uma família mega responsável. Que tenha consciência de que ela precisará de muitos cuidados médicos e internação — alerta a diretora do canil.
Enquanto Zoe não está livre para encontrar uma nova casa, outros 170 bichos carentes esperam no lar temporário mantido pela prefeitura. Filhotes de yorkshire chegaram há pouco, recolhidos na cidade. Outro grupo de recém-nascidos latia de forma aguda, sinfonia interrompida de imediato com a chegada de um humano disposto a estender a mão.
O contato com o canil, para doação de materiais ou para conhecer os hóspedes, pode ser feito pelo telefone (51) 9-9683-2117.
Com foco na castração para controle populacional, o canil tem sala de cirurgias de castração e dormitórios de pré e pós-operatório. A capacidade de ocupação é máxima, e cada cão adotado cede espaço a outro retirado das ruas. A esperança de mudança desse cenário foi renovada na mesma semana da covardia com Zoe: a adoção de Salsicha, um vira-latas desenterrado de um buraco em uma estrada vicinal da região.
— Salsicha foi enterrado vivo, veio muito magro, couro e osso pra cá. A família procurava uma adoção, e bateu na hora. Foi o Salsicha que os adotou - conta Fátima.
Salsicha é, inclusive, garoto-propaganda de uma campanha de combate ao abandono de animais. Tem sua foto estampada em outdoors pela cidade.
Gordo, ele vive hoje em uma chácara, sem a disputa por carinhos das quase duas centenas de concorrentes.