Por Celso Gutfreind
Psicanalista e escritor, autor de “O Terapeuta e o Lobo” (Artmed), entre outros
Em fins de março, faleceu, vitimado pela covid-19, o respeitado escritor e intelectual paraibano Wellington Pereira. Conheci-o em seus primeiros passos, prestes a começar um doutorado de Sociologia, em Paris. Estávamos no curso de francês da prefeitura de Alesia, ao sul da cidade. Ao acaso, talvez, sentamo-nos um ao lado do outro. Seus olhos me olharam com certa ternura, em meio ao silêncio de um tímido olhando para o outro.
Wellington desejava aprender o idioma, e ali não houve timidez que o detivesse. Cravou um necessário s´il vous plait antes de fazer uma pergunta para a professora antipática. Depois de ela esclarecer a declinação e antes de me mandar calar a boca, perguntei a ele se era brasileiro. Diante de sua surpresa, apontei a cadência nordestina do seu francês arranhado, próximo do franco-gauchês com que pedi pardon ao esporro da professora.
No intervalo, comemos um croissant com café e trocamos telefones. Mas era o século o passado, não havia celulares acessíveis, os números fixos moviam-se com as nossas mudanças sucessivas e nos perdemos de vista. Só não durou. Meses depois, reencontrei-o como colega da mãe de minha filha, na Sorbonne, ambos doutorandos de Michel Maffesoli.
Então, apesar de franceses já não arranhados, uma amizade consolidou-se em bom e cadenciado português. Wellington já tinha publicado excelente ficção, preparava livros de ensaios e encaminhava a sua bem-sucedida carreira como professor do departamento de Jornalismo da Universidade Estadual da Paraíba. Era jornalista, dos bons, com mestrado em Letras.
Na Universidade de Paris, brincava que fez o trajeto Sumé-Sorbonne, referindo-se à pequena cidade onde nasceu, no Cariri paraibano.
Conversávamos de tudo um muito, mas alguns assuntos jamais faltavam à boa mesa franco-brasileira. Um deles era a ficção. Outro era não abandoná-la, em meio a tantas noções e conceitos acadêmicos. E tinha o mais cabeludo de todos, que era o preconceito. Wellington o descrevia carnalmente, encontrando palavras ásperas para o quanto havia sido discriminado apenas por ser do Cariri. À época, eu vinha de perder um amigo argelino, que declinou da amizade quando descobriu que eu era judeu. Wellington, ótimo ouvinte, entre um queijo e um doce do qual não abusava, mostrava-se intolerante com o antissemitismo.
Quando defendeu o doutorado, brincou comigo que agora começaria a receitar também. Mas, antes disso, houve o estresse de sua defesa de tese, outra história que não poderia não ser contada. Wellington era casado com Lourdinha, assistente social que fazia um curso de especialização. Seu amor pelo marido era banhado por uma proteção bonita de se ver. Ele iniciava um processo de diabete e, com a mudança de país e hábitos, tornou-se dependente de insulina. Lourdinha cuidava do marido com afinco, daí ele não abusar dos doces, diante do olhar da companheira, terna e braba na mesma medida.
Quanto à defesa de tese, por já ter assistido a tantas outras, Wellington sabia que a banca francesa pegava pesado, com palavras e caretas: fazia parte do literal mise-en-scéne. Era aí que o paraibano fazia menção de que não aguentaria maus tratos e, dependendo do teor da reprimenda, rebateria em igual intensidade. Preocupados, fizemos nós, os amigos mais próximos, um trabalho de condicionamento, fazendo-o prometer que responderia a cada xingamento com um argumento erudito e sólido, de que só ele seria capaz, não antes de um cadenciado merci beaucoup. Na plateia, lembro que anotei mais de 15 mercis, sucedidos por frases sábias. Recebeu a láurea máxima, com unanimidade. Depois, voltou para o Brasil. Assumiu postos importantes em jornais paraibanos e na universidade pública.
Publicou dezenas de livros, entre diversos gêneros, incluindo um brilhante infantojuvenil que prefaciei, chamado Vovô nos Protege?. Ao falecer, deixa inéditos de contos e crônicas. Lourdinha contraiu os sintomas da doença e também partiu, uma semana depois. Mas, em meio a tanta morte, sinto ainda que estou contando uma história de amor, de que fui testemunha do começo. E que viverá em livros, em filha e memórias, conforme a poesia de um poeta gaúcho, adotado pelo paraibano: “Nada jamais continua/ Tudo vai recomeçar!”.
E continuará recomeçando, enquanto suas testemunhas tiverem tempo de contar, antes de também partirem de susto, de bala ou vírus, parodiando outro poeta, um nordestino adotado por gaúchos.