Assim que recebeu a tarefa da professora de ensino religioso, Joana de Souza Lopes, 15 anos, vasculhou fotos salvas no computador. A ideia do trabalho era destacar as transformações que a pandemia de coronavírus gerou na vida dos alunos. A adolescente encontrou imagens de festas em família, aniversários e outros eventos, todos anteriores a 2020 – na época, os abraços se multiplicavam, sem preocupação com distanciamento social.
— Coisas tão banais, que eu pensava que teria pra sempre — complementa a estudante.
A redação “Todas as Joanas que eu fui” comparou o antes e o depois dos tempos de isolamento social. O quanto alguns detalhes passavam despercebidos no período pré-covid-19. Situações pouco valorizadas, subestimadas.
“Eu fui a Joana nostálgica, a que via as fotos da família e amigos todos reunidos, a que sentiu falta das conversas sobre o jogo de quarta durante os churrascos, dos jogos de fim de noite, das piadas sem sentido que fazia todos rirem”, destaca parte do texto.
Moradora do bairro Lomba do Pinheiro, zona leste de Porto Alegre – a poucos metros do limite com Viamão –, a garota negra, de família humilde, escreve sobre casos de preconceito do último ano. Sem citar diretamente George Floyd – morto por um policial nos Estados Unidos – ou João Alberto Freitas, morto por segurança em agressão no Carrefour, ela se posiciona: “Fui a Joana que viu todas manifestações do movimento antirracismo, a mesma que se chocou ao ver que, em pleno século 21, o preconceito se faz tão presente”.
Joana foi também uma adolescente apaixonada por ídolos teen e fã de boybands – como qualquer outra em sua turma. Encantou-se com uma festa surpresa, mesmo longe do idealizado para uma debutante. A Joana de 15 anos parece ainda mais madura quando cita aquilo que acredita ser uma crise de saúde no país. Mas também é a que esquece da tristeza quando reproduz um áudio de “bom dia” enviado pela avó.
Veja a redação de Joana
Em 2021, garante a estudante, o caminho futuro já está traçado: seguirá a profissão que salvou milhões de vidas no mundo. Depois de ser diagnosticada com arritmia, Joana escolheu voltar aos consultórios como médica.
— Quero ser cardiologista. Eu descobri que tenho um sopro, fui fazer o exame, vi meu coração e me apaixonei — relembra.
Logo que leu a produção da filha, Donelia de Souza, 42 anos, buscou contato com GZH. Compartilhou o PDF com amigos, para que as inspirações da menina chegassem a mais pessoas, e o texto encontrou também a reportagem. As linhas emocionaram outros parentes, que repassaram o arquivo repetidas vezes.
Joana leu trechos da redação aos ouvintes da Rádio Gaúcha na manhã desta segunda-feira (31). Ganhou elogios da enfermeira Rosângela Pereira Lopes, fã do programa Gaúcha Hoje.
— Falei nesse fim de semana, dos encontros, das risadas em família, de dar valor ao simples, a importância de tudo isso. Lindo o relato dela — afirmou, em mensagem de WhatsApp enviada após a entrevista.
A estudante tem três irmãos, criados pela mãe. Donelia perdeu o marido, vítima de um câncer. O fato, acredita, influenciou a escolha de Joana pela Medicina:
— Foram anos vivendo no hospital. Ela não gosta de relembrar, mas tenho certeza que isso a inspirou.
Orgulhosa, a assessora jurídica não tem dúvida de que será mãe de uma médica. Ela própria se formou em Direito por meio de financiamento estudantil, e garante que a filha terá oportunidades para manter os estudos após terminar o Ensino Médio. Atualmente, Joana cursa o primeiro ano, no Colégio Estadual Parobé, bairro Praia de Belas.
— Sei da capacidade dela. O céu é o limite, ela pode ser tudo que quiser — diz a mãe, convicta.
Nos parágrafos finais da redação, Joana volta à atualidade, prevendo que dará mais valor às risadas, aos abraços e a toda ajuda recebida em casa. E envia um recado para a doença que, espera, será parte do passado.
“Não posso dizer, você, Covid, veio para o bem, porque não veio. Você machucou e ainda machuca muitas pessoas, leva ainda muitas outras. Espero ansiosamente o dia que você não passará apenas de uma história."