Por Celso Gutfreind
Psicanalista e escritor, autor de “O Terapeuta e o Lobo – O Conto na Clínica e na Escola” (Artmed), entre outros
Para o racismo, talvez, já tenha literatura suficiente. Em todos os campos. A prática é outra coisa. A mudança. Freud, sobre a psicanálise selvagem, alertava que a cura não vinha dos livros, mas dos encontros em si. Não seria possível analisar-se lendo. Um leitor profundo (sem preconceitos) tem enormes chances de não ser racista, mas hoje sabemos que tornar-se leitor é fruto de encontros, de alma e carne, com uma mãe, uma professora, uma comunidade.
Quanto à psicanálise, alguns de seus carros-chefes podem contribuir para pensar (e sentir) o racismo, embora não para erradicá-lo. Precisaria se juntar com a história, a antropologia, filosofia, sociologia, poesia, prosa e, ainda sim, esquecer-se delas e partir para os encontros verdadeiros.
De George Floyd, longe, a Beto Freitas, aqui, testemunhamos a atrocidade do racismo, estarrecidos diante de uma violência inominável. Quase sem palavras, pois já estamos dizendo que vidas negras importam e que cenas como essas são inaceitáveis. Mas, para a psicanálise, é preciso dizer, não com um livro, a não ser que seja um daqueles de Walt Whitman, o poeta sem preconceitos (sexuais, sociais) e para quem o seu livro era ele mesmo.
Está sendo dito, mas isso não é suficiente. É preciso – psicanálise – dizer e repetir. Repetir, repetir e ser ouvido. Repetir para elaborar. Para chegar ao símbolo, fruto nobre da existência humana, depois que toda a sua caca ou carga instintual pôde ser transformada, a partir do encontro com o outro. Falando em outros, estamos bem mal deles.
Ao comentar o assassinato do homem negro Beto Freitas, o vice-presidente Hamilton Mourão referiu-se a ele como um “homem de cor” e negou a existência do racismo no Brasil. Porque não o vê explicitamente, como nos Estados Unidos, aonde chegou para um intercâmbio na adolescência, porque não era negro, no Brasil.
Para o racismo estrutural, parece já haver bibliografia suficiente, mas ainda faltam ações, reações, reparações e, sobretudo, encontros. Já o estamos dizendo, mas falta repetir. Dizemos nas canções, nos poemas, nos filmes, nos romances, na vida e na arte. E não precisamos ir longe. Em Porto Alegre, Oliveira Silveira fez uma das melhores poesias do Brasil. Eu o conheci fora do livro, num shabat, culto religioso judaico, quando, com Moacyr Scliar, debatia a vida sob o prisma das suas diferenças estruturantes e não mortíferas. Para nós, que éramos jovens, aquele encontro valia mais do que mil palavras.
Jeferson Tenório, patrono da nossa Feira do Livro, publicou recentemente O Avesso da Pele, um dos livros mais pungentes e necessários sobre o assunto. Henrique, o pai do narrador, é assassinado em uma abordagem policial, depois de sofrer tantas delas, pelo fato de ser negro. Era professor de literatura numa escola estadual, havia acabado de sensibilizar os seus alunos para o encontro com Dostoievski, mas isso não foi suficiente para salvá-lo.
Ficção da melhor qualidade, entre Ogum e Shakespeare, entre orixás e russos, para dizer a realidade que vivemos. Quem a lê, diz também e agora precisa, segundo aquela psicanálise, repetir.
Para o racismo estrutural, parece já haver bibliografia suficiente, mas ainda faltam ações, reações, reparações e, sobretudo, encontros. Já o estamos dizendo, mas falta repetir.
Essa mesma psicanálise está de olho nos primórdios da vida humana. E há, aqui, controvérsias. Diz-se, às vezes, que o ódio é primordial e nasceríamos com ele. Mas, na pior das hipóteses, seria dirigido à mãe e ao entorno. Impossível que abarcasse outras diferenças como a cor da pele ou a escolha sexual. Seja como for, sabemos que tão somente encontros empáticos podem mitigar qualquer prenúncio de ódio.
Seja quando for, é preciso dizer. E repetir. Repetir, como o fazem os ritmos. Para Tom Waits, somos todos verdes, o que já seria melhor, mas acredito que somos todos um arco-íris. E nem o caleidoscópio daria conta de expressar-nos. Afinal, somos todos da cor humana. A propósito, ocorreu-me um projeto de letra de música, mais ou menos assim:
Para o racismo, uma banana.
Ou duas,
surdo à voz das estruturas,
atento ao barulho das ruas.
Nem verde ou azul a banana.
Digo e repito, uma banana
ou duas. Da cor humana.
Agora preciso de música para ela, pois sou incompleto, só sei dizer, não sei cantar, e a música do outro é que me faria ir adiante. E repetir. Se pedirei ajuda para o Edilson Ávila, a quem Mourão diria “de cor”, ou para o Érico Silveira Jr, a quem diria “sem cor”, eu já não sei.
Edilson ou Érico, ambos da cor humana. Então, tanto faz.