Geralmente em lados opostos nas discussões, religião e ciência podem se encontrar para dar força e resiliência às pessoas em um momento de isolamento e preocupação, por exemplo, trazidos pela pandemia. A opinião é do psicólogo clínico norte-americano Kenneth Pargament, 69 anos, uma das principais autoridades nos estudos da relação entre religião e saúde mental.
Para ele, que é professor na Universidade de Bowling Green, em Ohio (EUA), esses “dois mundos” se complementam e dão um sentido integral à vida. Pargament foi um dos destaques do evento online “Ciência e Fé Promovendo Esperança para Vencer a Pandemia do Novo Coronavírus”, promovido pela Legião da Boa Vontade na última segunda e terça-feira (19 e 20/10), quando concedeu a seguinte entrevista a GZH.
Como a religiosidade pode ajudar as pessoas a manter a sanidade mental neste contexto de isolamento?
Para muitas pessoas, a religião é uma fonte de conforto em tempos difíceis. Mas há um desafio a mais desta vez. Uma razão importante pela qual a religião pode ser tão poderosa é que ela fornece maneiras de ajudar as pessoas a manter um senso de coletividade em tempos difíceis. A covid-19, no entanto, interrompeu a capacidade de nos reunirmos em orações e rituais. Foi uma perda adicional. Formas inovadoras, online – o que inclui confissão, casamentos, funerais –, podem ajudar a minimizar isso, mas não há substituto para a capacidade de nos reunirmos face a face e exercermos a fé como uma comunidade.
A fé também é uma ponte para se manter conectado, ainda que remotamente, aos entes queridos?
A religião permite às pessoas terem uma sensação de conexão com seus entes, independentemente da distância. Com a fé, as pessoas podem resgatar memórias de seus momentos especiais com parentes e amigos, como o dom do perdão, um encontro amoroso, a experiência do parto. São os momentos que fazem a vida valer a pena, se descolam de nossa experiência comum. Também revelam verdades da vida e sentimentos de profunda conexão. Em nossas pesquisas, descobrimos que as pessoas que aproveitam os momentos com seus entes queridos experimentam um maior senso de significado e propósito. Elas têm mais proximidade com os outros e sentem que são mais capazes de superar situações estressantes, como a da pandemia.
Uma das faces cruéis desta pandemia é a impossibilidade de parentes e amigos se despedirem adequadamente de mortos pelo coronavírus. Que impacto esse adeus incompleto pode ter na saúde mental?
Os rituais religiosos são planejados para facilitar a transição das pessoas de um status para outro na vida. Os funerais e os momentos de luto ajudam as pessoas a aceitarem o fato de que um ente querido morreu e agora elas estão de luto. Mas, apesar dessa profunda mudança de status, os que ficam são lembrados de que ainda fazem parte de uma comunidade maior e que ainda são cuidados. Os ritos de passagem religiosos ajudam as pessoas a lidar com isso, aceitando a dor e o sofrimento. Como, agora, os ritos foram interrompidos, sem dúvida após a covid-19 enfrentaremos o desafio da saúde mental de atender às necessidades de milhares de pessoas que não foram capazes de sofrer totalmente suas perdas traumáticas. Os níveis de depressão, tendência suicida, transtorno de estresse pós-traumático, vícios e conflito familiar e colapso provavelmente aumentarão por alguns anos. Quando o coronavírus passar, acredito que as nações como um todo precisarão desenvolver maneiras criativas de ritualizar e honrar as memórias daqueles que morreram e oferecer consolo e apoio para aqueles que testemunharam essas perdas e sofreram feridas que não cicatrizaram totalmente.
Outro desafio da crise atual é o isolamento dos infectados em suas casas ou nos hospitais. Como essa solidão tende a atingir as pessoas?
Na pesquisa que realizei com minha colega Julie Exline, descobrimos que as principais crises da vida, como a covid-19, podem desencadear “lutas espirituais” – tensões e conflitos sobre assuntos sagrados com o divino, dentro de si mesmo e com outras pessoas. Essas lutas podem assumir a forma de raiva ou as sensações de punição e abandono. Elas podem envolver dúvidas sobre a verdade, por exemplo, das afirmações religiosas. Podem se manifestar como conflitos com instituições religiosas, com família e com amigos. E podem assumir a forma de perguntas sobre o significado da vida. Por outro lado, também conseguimos encontrar histórias inspiradoras de pessoas que cresceram em tempos de luta. Neste momento, estamos conduzindo pesquisas para determinar por que algumas pessoas crescem com suas lutas, enquanto outras declinam.
Ciência e a fé acrescentam uma dimensão crítica às nossas vidas. Não há necessidade de escolher. A questão chave é como aproximamos ciência e religião para viver uma vida da maior integridade.
Em qual medida o excesso de confiança na força divina pode levar as pessoas a se colocarem em situações de risco em meio à pandemia?
Encontramos uma grande diferença nas habilidades de enfrentamento e na resiliência das pessoas dentro de qualquer tradição religiosa. Essas diferenças desempenham um papel fundamental sobre se elas sairão de uma crise mais ou menos atingidas. Por exemplo, ao lidar com a covid-19, faz enorme diferença se as pessoas transferem toda a responsabilidade e o controle para Deus ou se veem Deus como um parceiro colaborativo no processo de enfrentamento. Aqueles que adotam um estilo adulador podem ter maior probabilidade de se colocarem em situações de risco, acreditando que Deus os poupará do contágio. Aqueles com um estilo mais colaborativo podem ser mais preocupados com a saúde e cautelosos, reconhecendo que seu próprio bem-estar exige não apenas o apoio de Deus, mas também seus próprios esforços.
Suas pesquisas demonstraram que pacientes com doenças graves, como o HIV, por exemplo, conseguiram reduzir a intensidade dos sintomas causadas pela doença com o auxílio da fé ou de algum tipo de crença. Por que isso ocorre?
Acreditamos que a religião oferece um conjunto distinto de recursos para as pessoas, especialmente aquelas que enfrentam doenças. Grande parte da sociedade moderna é dominada por uma ética de controle. Tentamos estender nosso poder, resolver problemas, consertar coisas e estender nossas vidas. Mas a realidade é que somos seres finitos frágeis, e não há muito o que fazer. Não importa o quão bem cuidemos de nós mesmos, a realidade é que enfrentaremos problemas, doenças e eventualmente morreremos. Como podemos lidar com isso? Esse é o lugar em que a religião entra. Ela fornece recursos para chegarmos a um acordo com nossos limites como seres humanos. Por meio de crenças e práticas espirituais, aprendemos a arte de abandonar, de render-se, de aceitar e de perdoar. Somos ensinados a ver um propósito mais profundo em nossas vidas e na vida de todos, em geral. Trata-se de uma ajuda a enfrentar a fragilidade e a finitude. Esses recursos acabam sendo inestimáveis para nós quando experimentamos doenças graves ou situações-limite.
A fé pode de fato ser uma aliada importante para pacientes acometidos pelo coronavírus, em particular em estado grave, se recuperem?
O que percebemos nos nossos estudos é que a fé pode fortalecer o sistema imunológico em relação ao HIV e às doenças cardíacas. Isso foi constatado em pesquisas examinando pacientes e suas reações. Por exemplo, em estudos com pessoas que testaram positivo para o HIV em Miami, Flórida (EUA), realizados por Gail Ironson, as pessoas que se voltaram para sua religião para lidar com a doença experimentaram melhorias em seus sistemas imunológicos e prolongaram sua vida. É muito cedo para saber se a fé opera dessa mesma forma com a covid-19, mas suspeitamos que sim.
Apesar dos benefícios que o senhor menciona, quem trabalha na área da saúde mental costuma evitar a religião em suas próprias vidas e na dos pacientes. Por que isso ocorre?
Quando se trata de religião, os profissionais de saúde mental são “anormais”. Quero dizer isso no sentido estatístico. Não são como as pessoas comuns. Pelas suas trajetórias, experiências ou outras particularidades, os profissionais da saúde mental tendem a ter muito menos probabilidade de acreditar em Deus e se envolver na vida religiosa do que as pessoas a quem eles servem. Parte da razão disso é que o campo da saúde mental tem sido tradicionalmente cético em relação às crenças e às práticas religiosas. Freud e Skinner, dois dos pais fundadores da psicologia, eram eles próprios antagônicos à vida religiosa, acreditando que ela servia como uma defesa infantil contra o confronto com a realidade.
Deveria haver uma integração maior entre esses “dois mundos”, o da fé e o da ciência, no campo da saúde mental?
Felizmente, as atitudes em relação à religião começaram a mudar nesse campo nos últimos tempos. Agora estamos começando a fornecer mais treinamento para profissionais de saúde mental em cuidados espiritualmente competentes. A religião é uma das dimensões que nos tornam humanos. Tem implicações importantes para nosso bem-estar, por isso deve ser integrada aos esforços para ajudar as pessoas com aconselhamento e psicoterapia.
O que percebemos nos nossos estudos é que a fé pode fortalecer o sistema imunológico em relação ao HIV e às doenças cardíacas. Isso foi constatado em pesquisas examinando pacientes e suas reações. É muito cedo para saber se a fé opera dessa mesma forma com a covid-19, mas suspeitamos que sim.
Estamos em um momento em que a ciência está sob forte ataque por alguns líderes mundiais, reverberando embates já vistos antes em torno de questões como as pesquisas com células tronco e o aborto. A pandemia radicalizou ainda mais a questão ciência versus fé?
Infelizmente, continuamos a ver a polarização da ciência e da religião em alguns setores. É lamentável, porque a ciência e a fé acrescentam uma dimensão crítica às nossas vidas. Não há necessidade de escolher. A questão chave é como aproximamos ciência e religião para viver uma vida da maior integridade. Se nos vemos como recipientes de uma centelha divina, então os bons cuidados com a saúde não são apenas uma tarefa científica, mas também uma obrigação religiosa. Por outro lado, a maioria dos cientistas concordaria que há um limite para o que pode ser realizado apenas por meio da pesquisa.
Sua pesquisa também alerta para o mau uso da religião, como a manipulação da boa-fé das pessoas. Quais são suas conclusões nesse sentido?
Os psicólogos da religião têm distinguido as pessoas intrinsecamente comprometidas com sua fé daquelas que a usam para atender necessidades não religiosas ou mesmo antirreligiosas, como progredir materialmente às custas dos outros. A religião é uma espada de dois gumes. Pode revelar o maior dos potenciais humanos, mas também pode estar ligada às piores expressões da natureza humana. Infelizmente, não faltam exemplos do mau uso da religião para servir a fins destrutivos. Poucas pessoas desconhecem os danos causados pelo clero e por líderes religiosos que usaram a autoridade de suas posições para abusar sexualmente de seus seguidores mais vulneráveis, por exemplo. É claro que esse tipo de abuso religioso não é novidade. Nos EUA, os princípios baseados na igreja foram usados para justificar e proteger a instituição devastadora da escravidão.
Como o senhor vê a ascensão do uso de argumentos religiosos por políticos?
Hoje não faltam instituições religiosas que apoiam líderes autocráticos, apesar de sua rejeição aos padrões morais e religiosos mais básicos, como bondade e tolerância. Minha esperança é de que a covid-19 leve não apenas a uma importante transformação e a um crescimento pessoal, mas também à busca pelos valores essenciais e enriquecedores das tradições religiosas, para que se movam da periferia para o centro da vida pessoal, social e política das pessoas.