Uma das grandes dificuldades para quem tem filhos e está trabalhando em casa, ao mesmo tempo em que cuida deles, é manter as tarefas do cotidiano sem abusar do uso de televisão, celular, tablet e eletrônicos em geral. Porém, basta conversar com algumas famílias para perceber que equilibrar o trabalho e o cuidado com as crianças não é tarefa fácil. Entretanto, com a ajuda de profissionais como pediatra, psicopedagoga e terapeuta familiar, além do relato de pessoas que passam por essa situação, é possível ver que a melhor forma de resolver o problema é encontrar uma rotina que favoreça a família neste momento e atividades que os pequenos gostem de fazer.
Para tentar auxiliar a população neste momento, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) lançou, na quarta-feira (3), a cartilha #BoasTelas #MaisSaúde. O texto reitera as recomendações contidas no Manual de Orientação #MenosTelas #MaisSaúde, divulgado em fevereiro deste ano, que oferece a pais e responsáveis orientações sobre o uso de telas como smartphones, computadores e tablets, e internet por crianças e adolescentes. Porém, com recomendações específicas para os tempos de pandemia.
No documento de fevereiro, as indicações são de evitar a exposição de crianças com menos de dois anos às telas, mesmo que passivamente; limitar em até uma hora por dia o consumo de telas por crianças de dois a cinco anos; em até duas horas por dia por crianças entre seis e 10 anos; e em até três horas por o uso de telas e jogos de videogames por crianças e adolescentes entre 11 e 18 anos. No documento divulgado esta semana, a SBP afrouxou a rigidez de quantidade de horas de exposição às telas, com exceção das crianças com menos de dois anos.
Conforme a SBP, diversas pesquisas demonstram que o uso de telas e internet por crianças e adolescentes tem ligação com o desenvolvimento de transtornos de saúde mental e problemas comportamentais. Contudo, neste momento difícil, é preciso levar em consideração as mudanças na maneira de trabalhar, estudar, se relacionar e brincar, principalmente em casa, devido à importância do distanciamento social como medida principal de prevenção ao coronavírus. Por isso, a instituição apregoa que, durante este período, é possível haver um relaxamento no rigor relacionado ao uso das telas e tecnologias.
Pediatra, hebiatra especialista em adolescentes que estuda saúde digital há 15 anos e membro de grupo de trabalho da SBP sobre esse tema, Susana Estefenon ressalta que, ao formular a cartilha, evitou-se falar em rigidez de horário por se compreender que, em casa o dia inteiro, é muito difícil evitar que crianças usem a tecnologia por mais tempo. Porém, aconselha que os pais organizem o dia com uma agenda que consiga contemplar coisas básicas como o relacionamento afetivo, o uso benéfico das telas, o lazer e o cuidado com a saúde mental e física.
— Vimos a necessidade de fazer uma adaptação para esse tempo de pandemia. É uma mudança radical, e as recomendações não devem ficar longe do possível. Somente em relação a crianças menores de dois anos é que não houve relaxamento. Elas não devem ser expostas a telas, exceto para fortalecer o vínculo afetivo com pessoas queridas, como em videochamadas, por exemplo — explica Susana.
A pediatra afirma que é muito importante fazer um uso positivo da tecnologia. Além dos momentos de comunicação com outras pessoas, compartilhar a atividade do uso de telas com os pais é uma forma de se aproximar, monitorar e estar junto. Outra questão que ela ressalta é sobre a importância de explicar para as crianças, mesmo as pequenas, sobre o momento que estamos vivendo.
— Se nós, que somos adultos, estamos passando por medo, ansiedade, estresse, nervosismo, irritação, imagina a criança que não entende e mistura fantasia e realidade. Com o adolescente, que está no meio de mudanças físicas e psicológicas, também não é diferente, eles precisam de apoio — diz Susana.
Segundo ela, é preciso dar para a situação uma interpretação que não seja apocalíptica. Dizer que é uma etapa a qual não tempos condições de modificar, mas podemos nos adaptar e fazer isso de maneira saudável e o mais positiva possível.
Sobre crianças abaixo de dois anos, a pediatra diz que, embora não seja recomendado, é perfeitamente compreensível que, em determinados momentos, seja preciso distrair a criança com vídeos, por exemplo, e que o essencial, nesse caso, é nunca deixar de monitorar o conteúdo e suprir ainda mais a necessidade emocional da criança, passando mais tempo com ela. Confira as recomendações da SBP no final desta matéria.
Organização de roteiro
Na casa da Graziane de Souza Arruda, 39 anos, Dario Eberhardt, 47, e do pequeno Artur Arruda Eberhardt, cinco anos, organizar um roteiro em casa foi muito importante para achar um equilíbrio.
Eles estão desde a metade de março trabalhando em casa. Os dois são professores e precisam cumprir horários de aulas pela internet. Juntos, conseguem se revezar na atenção com o filho. Embora o uso da tecnologia por parte de Artur tenha aumentado em função de estar mais tempo dentro de casa, a quantidade de atividades com os pais também aumentou. O maior compromisso do menino é assistir às aulas da escola pelo computador. E, para que os horários se encaixassem e a convivência em tempo integral fosse saudável, organizar a rotina foi fundamental.
— No início, não tínhamos estabelecido um horário fixo para as aulas do Artur. Aí vimos que a falta de regra não estava dando certo, cada dia ele fazia num horário. Agora, todos os dias, às 14h, ele senta para fazer as tarefas escolares. Ele já sabe que aquele é o momento de estudar. Depois, fazemos outras atividades que exigem bastante criatividade – conta Graziane.
A mãe do pequeno ressalta que, independentemente da atividade que eles façam, o que ela percebe é que o mais importante é a participação dela e do marido na atividade, principalmente por Artur ser filho único e praticamente não ter contato com outras crianças durante este período de pandemia.
Ela conta que a escola tem sido muito importante nesse sentido, pois apresenta várias propostas de atividade em que os pais precisam interagir com os filhos. A partir das propostas dadas, eles mesmos acabam pesquisando outras para brincar com ele.
— Além de pintar com tintas, brincar de esconder e pega-pega, criar brinquedos com sucata, o Artur adora fazer circuitos. Ele normalmente cria uma "missão" envolvendo os personagens de desenho que ele gosta, como, por exemplo, o Rock precisa levar uma ferramenta para o Zuma para eles salvarem o dia. Pra elaborar o circuito, é só usar o espaço disponível e muita criatividade. Por aqui utilizamos cadeiras, banquetas, cordas, pra criar obstáculos que ele precisa transpor para concluir a missão. Aproveitamos pra colocar uma música bem divertida pra animar o percurso.
E para diversificar as brincadeiras, além da confecção de brinquedos com sucata e jogos, eles investem até em experiências científicas. É que o pai de Artur é físico, e, com frequência, entretém o filho com experimentos diversos. Um deles é o de testar objetos que afundam ou boiam na água.
— Fizemos um conjunto de experimentos. Em um deles, enchemos um baldinho com água para observar quais materiais afundam e quais flutuam. Pegamos mais um pote de plástico e um pedaço de ferro. Pedi para que ele percebesse o que acontecia ao colocar o pedaço de ferro na água, depois colocamos o pote e perguntamos novamente o que ele havia percebido. Ao que ele respondeu: "um boia e, o outro, afunda". Discutimos um pouco sobre isso e, depois, coloquei o pote a boiar e pedi para ele colocar o ferro no pote. E ele percebeu que o pote virou um barco que não afunda — descreve Dario.
Mas a curiosidade de Artur seguiu, e ele quis saber quando o barco afundaria.
— Para responder, nós pegamos uma garrafa de água e enchemos o pote, aí ele percebeu que afundava lentamente — conta o pai.
Criatividade para evitar o tédio
Na casa da professora Jeane Penna Albertani e de Felipe Albertani Andreolli, de seis anos, as coisas são um pouco diferentes. Mesmo com as atividades e com a rotina bem estabelecida, a mãe percebe que o pequeno já está entediado de estar em casa. Como o trabalho do marido, Vinícios Andreolli, não permite que ele fique em casa, Jeane é quem dá conta de estar com o filho a maior parte do dia.
A maneira que ela encontrou de organizar a rotina foi deixar Felipe mais livre para brincar pela manhã. Logo depois do almoço, ele assiste à aula pela internet. No restante do tempo, Jeane tem usado a criatividade.
— Faço muitos brinquedos com sucata, nos aventuramos na culinária, descemos no pátio do prédio para jogar futebol no espaço vazio com os cachorros e damos preferência para usar os jogos quando o meu marido já está e casa. Felipe gosta muito de Lego e de livros. Antes de dormir, costumamos ter um momento de leitura. Nem sempre ele quer, mas tento negociar — relata Jeane.
Felipe não tem videogame e não costumava usar tablet ou celular. Com o excesso de tempo em casa, a família resolveu flexibilizar e permite que ele veja alguns conteúdos na internet.
— De televisão ele não gosta muito. No primeiro mês de isolamento, um amigo nosso emprestou um videogame. Eu deixei, mas logo devolvi, pois percebi que a criança se vicia facilmente, tem dificuldade de parar e fica irritada — conta.
Entre coisas que Felipe gosta está abrir uma caixa de papelão para ter uma supertela para riscar e usar uma vela para derreter giz de cera e fazer desenhos. Além disso, Jeane indica este site, onde é possível encontrar diversas sugestões de brincadeiras e vídeos de hora do conto.
Como lidar com as crianças e organizar uma rotina neste momento
Circe Palma, psicopedagoga, terapeuta de família e escritora, defende que, mais do que saber como lidar com as crianças em casa, é preciso aprender a ouvi-las.
— Neste momento de intensa aproximação com nossos filhos, temos a incrível oportunidade de aprender as suas diversas linguagens. A do desenho, a da fala, a do brincar, a do silêncio, a dos afetos. Ao falar sozinha, a criança fala de seus medos, seus desejos, suas cumplicidades. Seu silêncio é também uma fala. O silêncio de uma criança nos diz muito. Nem sempre é por tristeza, às vezes, é como se fosse apenas uma introspecção que a faz encontrar-se consigo e até admirar-se. Outras vezes, sim, é por sofrimento. Precisamos saber entender isto e confortá-la — diz Circe.
Circe cita que uma das formas de perceber os sentimentos da criança é quando ela desenha, pois é assim que representa o que está no seu íntimo. É no desenho que ela mostra o que gosta, de quem gosta, o que e quem é importante para ela. E ressalta que uma das linguagens mais importantes da criança é a do afeto. E que o amor é a mais genuína fonte de vida no mundo infantil.
— É preciso que os pais entendam essas necessidades infantis porque elas precisam ser ofertadas para os filhos. Brincar com eles, participando das suas invenções, transformando a sala numa floresta onde foram acampar, por exemplo. Ou empoleirar-se no sofá da sala, ou mesmo na cama, no quarto dos pais, transformando-os num imenso navio, onde todos estão a bordo e, a partir daí, criar situações de perigo, de suspense, enfim, onde a imaginação levar — sugere a psicopedagoga.
Para isso acontecer, porém, Circe diz que é necessário adotar uma rotina de tarefas.
— Combinem horários para ver televisão, para brincar no tablet ou no computador, para o trabalho dos pais – e aqui vai uma dica: os pais também devem se impor estes horários para não trabalharem o tempo todo –, para dormir e para acordar. E, principalmente, horário de brincar com os filhos. Todos na casa precisam organizar e seguir as rotinas combinadas — ressalta.
Maiores de cinco anos
Conforme a educadora, com crianças maiores de cinco anos, a situação é um pouco diferente. Elas já aprenderam a ler e ainda gostam de ouvir histórias, e a tecnologia pode ser uma aliada, se for bem usada. Porém, nada pode assumir o exagero.
— Os jogos para as crianças mais velhas têm um sabor de descoberta, de satisfação de vencer desafios. Jogos de tabuleiro com a família, com os pais, ou apenas entre os irmãos, são bastante recomendados. Mas, da mesma forma que os eletrônicos, eles não devem ser os únicos. Jogos de adivinhação, de desafios que remetem ao raciocínio lógico são muito bem aceitos nesta idade. Apesar do protagonismo dos eletrônicos, os jogos que não dependem dessas mídias ainda oferecem muito interesse para os pequenos — explica Cerci.
A psicopedagoga defende que, numa sociedade em que as tecnologias eletrônicas se tornam recursos importantes, seria totalmente sem sentido impedir que as crianças se valessem deles tanto para construir seus conhecimentos, quanto para seu divertimento. Claro, sem deixar cair no exagero e sempre com monitoramento do conteúdo.
— A atitude mais sensata dos pais deveria ser um equilíbrio entre a permissão para tais atividades, orientando e participando com os filhos de todas as suas tarefas, e o acompanhamento da realização delas. De tal modo que todos pudessem se divertir, trabalhar e acompanhar o desfecho deste que é um período bastante difícil para todos nós, especialmente para as crianças. No entanto, é preciso ficar atento para que as cobranças não assumam papel de vilãs nas atividades de um dia a dia que se impôs tão repentinamente — destaca Circe.
A educadora indicou alguns vídeos com dicas de brincadeiras para fazer com as crianças em casa. Confira:
Cesta dos tesouros Montessori: o que é e como fazer?
Três ideias de brincadeiras
Monstrinhos de bexiga com farinha
Massinha de modelar caseira
Diante deste novo cenário, a Sociedade Brasileira de Pediatria faz as seguintes recomendações:
1. Tempo para saúde com sono dentro do horário adequado para cada faixa etária, bem como o número de horas, importante não só pelo descanso, mas também para a produção de hormônios, de maneira fisiológica. Ter uma alimentação regular e com horários para: café da manhã, almoço, lanche da tarde e jantar, bem como atenção para qualidade não só nutricional, mas sem excesso calórico e também tempo para fazer alguma atividade física regular, exercícios ou brincadeiras com movimentos ativos.
2. Tempo para o relacionamento afetivo das crianças e adolescentes permanece como elemento importante, principalmente para crianças abaixo de cinco anos, que precisam conviver através das telas com seus avós e outros familiares, seus amiguinhos. Para este grupo etário é muito difícil entender o que está acontecendo. Não se deve mudar a limitação de horas de exposição às telas para crianças menores de dois anos, sendo liberado apenas para o uso afetivo gerenciado pelos pais. Nas outras idades, é importante combinar um tempo mínimo para isto, sempre com algum monitoramento.
3. Tempo funcional para assistir a aulas, fazer pesquisas e tarefas. Isso vai ser variável com a faixa etária, a qualidade da escola, se tem internet e equipamento adequado. É importante pontuar sobre a abordagem pedagógica da escola e a quantidade e qualidade das aulas e da educação online nas redes pública e privada e seus reflexos num futuro próximo, seja passar de ano sem ter tido aula até o comprometimento por falta de aulas dos adolescentes que vão fazer a prova do Enem. Esses fatos terão um impacto na saúde psíquica comportamental e no processo educacional desses grupos sociais.
4. Tempo para a família se conhecer, brincar, conversar, criar novas formas de interação e afeto. Este talvez seja o tempo mais importante para conhecer seus filhos, suas habilidades, suas dificuldades e seus limites e também para os pais conhecerem, nesta função, como são suas habilidades, suas dificuldades, e poder avaliar melhor a necessidade de pedir ajuda durante o desempenho e divisão das tarefas domésticas, como arrumar o quarto e armários, lavar e guardar as roupas, fazer um almoço ou jantar juntos. Criar novas formas de conviver com mais alegria e fortalecer a união da família.
5. Tempo para lazer, seja com jogos, filmes, conversas fora das telas. Os jogos, filmes e o uso de outros aplicativos precisam ser sempre e antes avaliados conforme os critérios da classificação indicativa e a faixa etária, acompanhado da permissão pelos pais.
6. Tempo para segurança, de cuidados e atenção para proteção e privacidade. Orientação para os perigos online e como fazer o uso seguro das tecnologias de informação e comunicação. Aprender sobre canais para denúncias e apoio em relação aos atos de violência, com contato com a escola ou as redes de suporte e canais de ajuda online.