Os dias podem parecer iguais em meio ao distanciamento social, mas alguma coisa mudou na sua casa. Sete semanas de pandemia do coronavírus foram suficientes para criação de uma série de hábitos, muitos dos quais já prometemos levar para o famigerado "depois que tudo isso passar".
A consultora de moda Patricia Pontalti, 45 anos, já sentenciou: ninguém mais entra de sapatos na sua casa, em Porto Alegre. Era uma ideia que a autodeclarada neurótica com limpeza tinha na cabeça há algum tempo, por estimar a quantidade de sujeira que um calçado pode trazer da rua. A pandemia foi o empurrão para adotar o costume.
— Ainda no começo das notícias, foi a primeira coisa que eu decidi: nunca mais! — anuncia.
Quando acontece um evento da gravidade de uma pandemia, historicamente, as relações e o sujeito desenvolvem recursos para lidar com novos cenários, segundo a professora da Faculdade Imed e presidente da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul, psicanalista Mariana Steiger Ungaretti. E 2020 traz uma esperança de que, apesar de traumático, seja um momento transformador em aspectos positivos.
— O ser humano passa a olhar para coisas que não eram vistas antes. A sensação é de que as pessoas estão se redescobrindo em diferentes aspectos, de enxergar e desenvolver o que antes passava batido, pela correria ou por outros fatores — comenta a especialista.
Patricia ainda redescobriu a culinária. Ela resgatou uma série de receitas de família, como o guisado com ovo da mãe e massa caruso do Tio Vivaldo, sabores que deixam a consultora com a sensação de estar "aquecida e acarinhada".
Já para Ana Carolina Bueno, 34 anos, esse é um campo completamente novo de aprendizado. Morando sozinha, a flautista viu que teria de dar um jeito de cozinhar assim que começou o distanciamento social. Começou com uma massa a bolonhesa, mas já fez até risoto ao pesto e está louca para preparar uma janta para a família e amigos quando a quarentena acabar —ela pensou em um salmão com molho agridoce.
— Sempre fui da turma que lavava a louça, sou uma negação na cozinha. Opa, era uma negação na cozinha — corrige-se, alertada pela repórter. — Que bom usar esse verbo no passado.
No Instagram, ela mostra sua conquista, ri dos erros com os amigos e alia a nova e a velha paixão: enquanto espera o bolo ficar pronto, ensaia com sua flauta. Acabou enxergando semelhança nas duas artes:
— As panelas são como uma sinfonia. É como se cada ingrediente fosse uma nota musical.
A psicanalista Mariana acredita que muitos costumes devem se manter. Não todos, e talvez não na mesma frequência, mas os que fizerem sentido. Mas como levar as mudanças em que você viu valor para depois da pandemia? Para Wagner de Lara Machado, professor da pós-graduação de Psicologia da PUCRS, talvez isso não ocorra automaticamente.
— Cada um deve fazer um exame das suas atividades de rotina, estabelecer prioridades, horários para cada atividade. Tudo passa por definir metas: pode existir um esforço ativo para que esses hábitos ultrapassem um período e sejam incorporados — afirma.
Quando a pandemia acabar, Patricia pretende montar um ambiente no corredor de entrada do apartamento para as visitas cumprirem a regra de tirar os sapatos com mais conforto. Com a família em isolamento social, a filha Clara anda de meias pela casa, enquanto Pati e o marido, Lucas, vivem descalços mesmo.
E se têm hábitos que devem ficar, também têm hábitos que ela vai precisar reaprender.
— Não sei nem como vou andar de salto — ri a consultora de moda.
Mais cuidado com o que se toca
A autônoma Marina Fagundes, 23 anos, se apavora ao recriar na cabeça um cenário específico, ambientado em um shopping center. Lembra que até dois meses atrás as pessoas iam às compras de ônibus, encostavam em vários produtos, apoiavam-se em corrimãos. E depois estavam na praça de alimentação segurando um hambúrguer com as mãos para comer, sem lavá-las, nem nada.
Se o álcool gel já estava na bolsa dela antes, passa a ser quase uma extensão do corpo em época de pandemia. E a preocupação não acabará na higienização das mãos: a lavagem mais criteriosa de frutas e verduras veio para ficar, garante ela. Antes, na hora de comer, passava uma água rapidinho. Agora coloca de molho por 30 minutos, com uma colher de sopa de água sanitária para um litro de água, e enxágua em água corrente depois.
Marina está certa de que as pessoas "não vão passar ilesas por isso tudo". O brasileiro vai ser menos caloroso, na opinião dela:
— Vai demorar para a gente voltar a interagir como antes.
Linamara Rizzo Battistella, professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), também pensa assim. Ela diz que vamos voltar a estar perto de outras pessoas, mas com menos risco.
— Estamos vivendo uma mudança de comportamento com o distanciamento social. Sem beijinhos, sem abracinhos, e talvez isso tenha que ser um modelo daqui pra frente. Porque estaremos envolvidos em muitos ambientes, com muitas pessoas ao longo do dia, e o bom senso pede que essas regras que estão sendo colocadas hoje se mantenham.
Para Juliana Scherer, biomédica e professora de Medicina na Unisinos, é possível que, atentas a amplas possibilidades de doenças infectocontagiosas, as pessoas sigam usando álcool gel, mantendo ambientes arejados, evitando tocar em corrimões e superfícies potencialmente contagiosas e até usando máscaras de pano para evitar o contágio de outras pessoas quando estiverem gripadas. Ou, pelo menos, quer acreditar nisso:
— Com o passar dos anos, se não tornar a acontecer algo do gênero, as pessoas esquecem um pouco e diminuem a intensidade dos cuidados. Mas como vai levar um tempo ainda para tudo voltar à normalidade, então tem maior chance desses comportamentos benéficos se manterem.
Algo que no momento está arraigado, como já percebeu a especialista, é um olhar comunitário sobre etiquetas de higiene em público. As pessoas estão aprendendo que precisam, pelo menos, colocar o braço na frente da boca ao tossir e espirrar. E cobram de quem não faz isso.
A redescoberta do telefone
Antes de conversar com a repórter, a estudante de mestrado em Ciências Políticas Katiele Rezer Menger, 26 anos, fez uma lista de costumes novos que acabou curtindo. Não é de se espantar que a organização norteie muitos deles — característica que ela não usava para se descrever antes do coronavírus.
A jovem agora tem dia fixo para a faxina, tira os sapatos para entrar em casa, faz compras (conscientes, garante) pela internet, aprende alemão online — coisas que pretende continuar fazendo. E redescobriu uma invenção de 1870: o telefone.
Com o distanciamento social, ela começou a ligar com frequência para um amigo da época de cursinho pré-vestibular, que perdera o contato em razão das agendas que não fechavam. Ficam até duas horas conversando, retomando a proximidade que perderam há oito anos.
Faz também mais chamadas de vídeo com amigas. Um dos grupos segue fazendo seu café semanal — mas pela tela do computador.
— Tinha muita preguiça de falar por telefone, e acredito que isso vai mudar. Tinha pessoas que a gente ficava esperando muito tempo para ver, ou que não conseguiria ver pessoalmente, em razão de horários ou correria. Ao mesmo tempo, a gente tinha o telefone na mão e não ligava.
O exercício físico dentro de casa também é um costume que vai ser mantido em muitas casas brasileiras. Katiele inaugurou o tapete de ioga comprado há tempo, prática que o produtor de eventos e diretor audiovisual Rafa Ferretti, 49 anos, também adotou.
Ele começou em razão do condicionamento físico e como uma forma de "organização mental": pai de Dante, cinco anos, e de Martin, três, também dentro de casa em isolamento social, Rafa precisava de um tempo para parar tudo e se acalmar.
Deu tão certo que ele parou de fumar. Não chegava a se considerar um viciado: consumia apenas uma carteira por semana. Mas era um hábito que queria deixar.
— Agora mesmo estou tomando um café, coisa que não conseguiria fazer sem fumar um cigarro — disse durante a conversa com a repórter por telefone. — Quando comecei a fazer ioga, essa vontade simplesmente desapareceu.
Rafa mora em frente à orla do Guaíba. Claro que quer voltar a caminhar com essa vista quando a pandemia ficar na lembrança. Mas não vê mais a ioga fora da sua rotina:
— É importante para manter o foco mental, essa coisa da atenção consigo mesmo. Eu não tinha muito disso, não. Mas vou fazer 50 anos, tenho crianças pequenas, tenho que me cuidar também.