Na chuva, no frio, no sol e, até, durante uma pandemia, eles não param de circular pelas ruas. Reconhecidos como profissão, via lei federal regulamentada em 2009, os motoboys, porém, seguem até hoje desvalorizados por uma parcela da sociedade. Agora, a profissão acabou sendo percebida como essencial, enquanto parte da população cumpre o distanciamento social em razão do coronavírus. O serviço dos motociclistas entregadores aumentou, e a responsabilidade também.
Somente em Porto Alegre e na Região Metropolitana são 75 mil motoboys e motogirls trabalhando até 16 horas diárias, segundo o Sindicato dos Motociclistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindimoto). Para o presidente da entidade, Valter Ferreira, esta é a primeira vez, de fato, que a categoria parece ter “saído das sombras”, como diz.
— Precisou vir um flagelo de grande magnitude para que os nossos governantes e, acima de tudo, a população, enxergasse a nossa categoria e entendesse o quão importante ela é para os municípios e para os Estados — desabafa.
Ferreira, reclama, sem quantificar, a falta de acesso a equipamentos de proteção individual (EPIs) para os profissionais seguirem trabalhando. Ele afirma que a entidade tentou contato com a Secretaria Estadual da Saúde (SES) para pedir um auxílio, mas não obteve sucesso. Por meio da assessoria de imprensa, a pasta informou que “o Estado está empenhado em disponibilizar máscaras e EPIs aos profissionais de saúde que trabalham diretamente na assistência aos pacientes. A iniciativa privada deve providenciar as condições de trabalho para seus empregados, assim como os trabalhadores autônomos”.
Na segunda quinzena de março, o Ministério Público do Trabalho emitiu nota técnica com medidas voltadas às empresas de transporte de mercadorias e de transporte de passageiros por plataformas digitais. O documento determina que as companhias forneçam gratuitamente para o entregador álcool gel, lavatórios com sabão e papel toalha, serviço de higienização para os veículos, água potável para o consumo desses profissionais e espaço seguro para a retirada das mercadorias.
Motoboy autônomo há 25 anos, Marco Antônio Insaurrald Umpierre, 53 anos, tem usado parte do dinheiro recebido pelas entregas para comprar máscaras, álcool gel e luvas. O material usado por ele é trocado diversas vezes ao longo do dia. Umpierre revela que uma única jornada de trabalho pode durar até 18 horas.
— Tenho usado EPIs para proteger as pessoas que têm contato comigo. Afinal, passo o dia todo na rua trabalhando. Não estou pensando em mim, mas me preocupo mesmo com os clientes que atendo — justifica.
Ao contrário de Umpierre, Ana Paula de Moraes, 40 anos, 20 deles atuando como motogirl, faz parte de uma cooperativa que vem distribuindo EPIs aos profissionais. Ela se emociona ao lembrar dos colegas:
— Fico muito preocupada porque estamos trabalhando muito mais do que o normal e a maioria das empresas não está nos dando condições para nos resguardar. Peço que Deus guarde todos os motoboys e que passem ilesos. E que se alguém se contaminar com esta doença, que eles se recuperem logo e voltem para a rua porque a gente, realmente, está precisando do apoio de todos.
Responsável há uma década pela romaria dos motociclistas em Porto Alegre, celebração que reúne mais de 30 mil pessoas, o padre Vanderlei Bock é enfático quando o assunto diz respeito à profissão dos motoboys:
— Eles são estigmatizados como uma profissão desonrosa, tem muita gente que olha para a classe dos motoboys como se eles fossem bandidos, é triste porque eles não são valorizados. Mas por trás de cada moto está uma pessoa que faz daquela motocicleta um sustento para si, para a sua família. É um trabalho que não mede esforços, não têm horário, não tem dia. De certa forma, são como pequenas abelhas fazendo o trabalho de completar esta colmeia tão grande que é a nossa sociedade.
“Não me arrependo de ter largado o futebol”
Um dos maiores orgulhos de Jefferson Luiz da Rosa Barbosa, 33 anos, é ter se registrado como microempreendedor individual. Motoboy há 15 anos, Barbosa faz questão de dizer que é o seu próprio patrão. Até por isso, é ele quem decide quantas horas trabalhará por dia. E tem sido muitas: 16 horas, no mínimo.
São duas jornadas diárias atuando como motoboy. Entre 8h e 18h, o motociclista profissional presta serviços para escritórios e consultórios dentários. Desde o começo da pandemia, porém, diversificou os clientes, atendendo também restaurantes e farmácias. Na semana da Páscoa, ainda conseguiu um contrato com uma rede de lojas de chocolates. Das 20h até 2h, Barbosa atua no segundo emprego, entregando bebidas encomendadas numa loja especializada.
Na rua, percebeu a diferença dos clientes ao ser recebido nos portões das casas. Alguns, afirma, têm medo devido à possibilidade de contágio. Outros, acredita, por preconceito com a profissão:
— Muita gente não quer receber, pede para deixar na porta. Os idosos, principalmente. E entendo. Outros, viram as costas e nem dão obrigado. Nunca esqueci uma pessoa que fez questão de me dizer que não gostava de motoboy e que jamais dependeria de um. Agora, imagino que ela esteja precisando do nosso trabalho.
Entre um trabalho e outro, ele passa em casa para ver os filhos Iarley Zenito, 10 anos, e Heryka Saraides, 12 anos, o enteado, Guilherme, 18 anos, e a mulher, a técnica de enfermagem Luana Santos Souza, 35 anos, com quem está casado há 17 anos. Foi Luana quem orientou o marido sobre os principais cuidados no combate ao coronavírus.
— Quando chego em casa, deixo as minhas roupas e o meu tênis na rua. Vou direto para o banho. Preciso me cuidar e cuidar da minha família — relata.
Dizendo-se feliz com a função escolhida, Barbosa abandonou uma promissora profissão ainda na adolescência. Meio-campista, atuou nas categorias de base do Grêmio e do Flamengo (RJ) até sofrer duas sérias lesões nos joelhos e negar-se a passar por cirurgia. O conselho para deixar o esporte veio da avó paterna, hoje falecida.
— Minha avó dizia: “dinheiro é bom e paga as contas, mas muitas amizades só estarão contigo enquanto tiver dinheiro”. E foi isso mesmo que ocorreu. Não me arrependo de ter largado o futebol. Sou feliz e ainda jogo com o Pampa Futebol Club — conta.
Na volta a Porto Alegre, Barbosa trabalhou como jornaleiro, assistente em pet shop, frentista e manobrista, até se tornar motoboy e abrir uma microempresa individual (MEI). A chegada da pandemia o fez ter a certeza de que está no lugar certo.
— No meu modo de vista, hoje, a primeira categoria mais importante é a dos caminhoneiros. Em segundo lugar, está a dos médicos e técnicos de enfermagem. Minha categoria, a do profissional motoboy, vem em terceiro lugar. Sem essas três categorias, acredito que hoje o Brasil não anda — afirma, orgulhoso.
“A minha rotina de vida mudou bastante”
Em 20 anos trabalhando sobre uma motocicleta, a motogirl Ana Paula de Moraes, 40 anos, não recorda de outro período em que precisou trabalhar tantas horas diárias, de segunda a segunda-feira. Ela vê a pandemia como principal agente na mudança da rotina. A partir do isolamento social, relata, os pedidos de motofrete passaram à frente das solicitações de restaurantes.
Gestora numa cooperativa que reúne 400 motoboys autônomos na Capital, Ana Paula viu as horas diárias de trabalho saltarem de 8h para até 16h. E surgiram clientes que antes não tinham o serviço, como uma banca do Mercado Público onde hoje ela faz 50 entregas por dia. Lojas de tecnologia também passaram a vender à distância para quem atua em home office. E os restaurantes mudaram o horário de atendimento, observa Ana Paula. Antes da quarentena, os pedidos eram noturnos. Agora, são ao meio-dia e quase não há solicitações de entrega de comida no período da noite.
— A minha rotina de vida mudou bastante. Trabalhamos com uma folga por semana, mas tem ocorrido cada vez mais de trabalharmos também na folga para cobrirmos escalas. Há colegas que estão há 30 dias sem folgar — revela.
No início de março, Ana Paula voltou de uma viagem ao Rio de Janeiro com febre e sintomas de gripe. Sem fazer exames, isolou-se por 15 dias em casa. Os sintomas passaram e ela retornou ao trabalho com ainda mais cuidados. No bagageiro não faltam máscaras e álcool gel, distribuídos pela cooperativa. Também aprendeu a lidar com os novos formatos de atendimento aos clientes:
— O pessoal está, realmente, com muito medo. Principalmente, os mais idosos. Eles preferem manter uma distância. E, às vezes, não querem nem pegar a sacola. Deixam uma bacia ou um plástico no chão para largarmos a sacola. Muitos estão preferindo o pagamento online para não evitarem dinheiro ou máquina de cartão.
Mãe de três filhos — Eduardo, 15 anos, Ana Elisa, 19 anos, e Sarana 24 anos —, e avó de Ana Luíza, dois anos, filha de Ana Elisa, Ana Paula mora com o filho mais novo. Além da alteração na rotina de trabalho, a vida pessoal também ganhou novos rituais antes de entrar em casa. Caneleiras, colete reflexivo, botas e jaqueta são pendurados do lado de fora. Devido ao tempo escasso de folga, a motogirl prefere não lavar os equipamentos porque não secarão até o outro dia.
— O resto da roupa é retirado no banheiro e já lavo no mesmo dia. Meu filho já sabe que não pode chegar perto das minhas roupas de trabalho — comenta.
Feliz com o reconhecimento pela profissão, apesar do momento de tensão, Ana Paula lembra dos clientes que demonstram preocupação com a vulnerabilidade do trabalho dos motoboys diante de uma doença sem vacina ou remédio específico. E se emociona ao falar dos colegas:
— Fico muito preocupada porque a gente está trabalhando muito mais do que o normal, e a maioria das empresas não está nos dando condições para nos resguardarmos. Peço a Deus que guarde todos os motoboys para que eles passem ilesos por isso. E, se alguém se contaminar com esta doença, que se recupere logo e volte para a rua porque a gente, realmente, está precisando do apoio de todos.
“Hoje, não fiz nenhuma entrega”
Acostumado a trabalhar de segunda à sexta-feira e ainda esticar a função nos sábados e domingos, devido a quantidade de entregas para escritórios e pequenas empresas, o motoboy Samuel Alves, 33 anos, há 12 na atividade, viu despencar o salário nas três semanas mais recentes. Desde o início do isolamento social, ele tem saído para trabalhar apenas nos dias úteis. E, nem assim, recebe pedidos.
— Hoje (quarta-feira, 7), fiquei o dia todo na rua e não fiz uma entrega. O movimento está horrível para quem atende serviços mais especializados. Comércios pequenos, familiares e escritórios, que atendo há anos, não estão trabalhando — conta.
Preocupado com a mudança repentina, Alves pensa, inclusive, em ampliar o leque de entregas, algo que jamais precisou fazer. Enquanto rema contra a crise econômica, preocupa-se em manter a segurança própria e dos clientes. O álcool gel ganhou espaço no kit do dia a dia, ao lado dos lenços umedecidos, da escova de dentes e do creme dental. A cada hora, limpa o baú e o guidom da moto. E toda a vez que recebe uma nova encomenda, a higieniza com álcool gel antes de entregá-la.
O motoboy divide a clientela entre os que se preocupam com a situação atual e aqueles que não lembram dela.
— Metade dos clientes têm uma preocupação maior em não manter contato direto. Pegam a encomenda com balde, com sacola ou pedem para deixá-la sobre o muro. A outra parte, não tem preocupação. Alguns, até pedem para apertar a minha mão. Principalmente, clientes mais antigos e que estão me vendo menos. Mas eu mesmo me policio, tentando manter uma distância — descreve.
Em casa, criou uma área para descarte do material quando chega da rua. Uma caixa foi colocada na porta para receber chaves, relógio, carteira e celular. O calçado nem entra. As roupas são lavadas na mesma hora.
— O serviço de telentrega foi considerado essencial pelos governantes, mas fico chateado por não ser valorizado por eles. Estamos para cima e para baixo, sem qualquer proteção. Faltam políticas públicas dos governos para nos ajudar. O álcool gel que eu tenho no baú, por exemplo, consegui no sindicato — afirma.