É chegada a época de os adultos exercitarem a criatividade e até fazerem algum contorcionismo verbal para falar do assunto que mais alvoroça a criançada no Natal: o Papai Noel. Espelho da ingenuidade infantil e símbolo do consumismo ocidental, o velhinho de barba branca e basta habita o imaginário infantil e chega a provocar discórdia na escola à medida que a verdade vai se descortinando apenas para alguns. Os pais, enquanto conseguem alimentar a lenda do ilustre morador do Polo Norte que distribui presentes, por vezes beneficiam-se da inocência dos filhos para mantê-los na linha, condicionando o bom comportamento a uma possível visita na noite de Natal.
Festejado pelo comércio, o 25 de dezembro também tem vasto apelo religioso. O cristianismo, religião com mais adeptos no planeta, celebra neste dia o nascimento de Jesus Cristo (ou Jesus de Nazaré). As igrejas pregam uma festa intimista, regada a cumplicidade e afeto, à imagem e semelhança do homenageado. Essa sobriedade na noite natalina foi evocada até seus últimos dias de vida pelo escritor colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014), que sempre defendeu ceias livre de luxo e sofisticação. O autor criticava as “sinistras festas de Natal”, como ele chamava os megaeventos com fogos de artifícios anunciando o jantar natalino.
Ao advogar pela simplicidade, Gabo relembrava dos presépios domésticos, uma instalação pródiga de imaginação familiar. Ninguém se incomodava, dizia o autor de Cem Anos de Solidão, com o Menino Jesus maior do que o boi ou com o anacronismo de uma Belém de 2 mil anos atrás cujo cenário era complementado com um trenzinho, um pato de pelúcia maior que um leão nadando no espelho ou um guarda de trânsito conduzindo o rebanho de cordeiros. Essa miscelânea de objetos despadronizados remontando os instantes seguintes ao nascimento de Jesus não fixava atenção de ninguém a não ser pela aprazível união das crianças a montá-lo.
Nesta reportagem, três profissionais da psicologia e psiquiatria falam como esses temas podem ser abordados em casa, com as crianças. E duas famílias de Estância Velha e Campo Bom, no Vale do Sinos, contam como os filhos encaram assuntos como Papai Noel, presentes, Jesus Cristo e as relações familiares.
A hora de reforçar laços familiares
Na família Vinder München, de Estância Velha, no Vale do Sinos, Natal e família se complementam. O técnico em telecomunicações Daniel München, 34 anos, e a esposa dele, Bárbara Vinder, 29, confeiteira, estão pactuados a levar os filhos, Danielli, sete, e Bernardo, cinco, para passarem um pedacinho do dia que seja com os avós, no almoço ou na ceia. Para isso, precisam conter o desassossego da filha mais velha, sempre pronta para pegar o rumo da praia antes da hora.
— Explicamos que Ano-Novo é festa: a gente viaja. Mas Natal é com a família. Depois, se for o caso, viajamos para a praia — conta Daniel, lançando um olhar pedagógico na direção da pequena.
Para o casal, o 25 de dezembro tem uma atmosfera pacificadora, que começa a ser preparada ainda em novembro, com a montagem do pinheirinho. O quarteto, neste ano, retirou os enfeites das caixas de papelão na metade daquele mês. Pais e filhos pegaram os pisca-piscas e se entretiveram dando forma a um dos mais simbólicos elementos natalinos. Com papel e caneta em mãos, Danielli e Bernardo escreveram, cada um a seu modo, a cartinha para o Papai Noel, pedindo bicicletas novas.
A família celebra o nascimento de Jesus Cristo seguindo a liturgia católica e transmite a tradição às crianças. Embora Daniel e Bárbara apresentem cotidianamente a doutrina cristã aos pequenos, o papel mais didático fica com os avós e com a escola.
— O colégio ajudou muito no ensino deles, alertando que Natal não é só presente, não é só Papai Noel. Que é o nascimento de Jesus — conta Bárbara.
Professora de Psicologia da Universidade Feevale, Denise Regina Quaresma da Silva observa que o clima natalino tem poder de fazer as pessoas enxergarem dentro de si e de promover a revisão dos relacionamentos. Ela acredita que, independentemente de credo religioso, ao falar sobre Jesus Cristo se faz importante deixar claro que foi uma pessoa do bem:
— A educação religiosa é perigosa quando apresenta um Jesus punitivo, com um olho enorme controlando tudo e todos, regulando comportamentos. Estes ensinamentos podem desenvolver sintomas de ansiedade nas crianças, podendo ser a origem de uma paranoia.
Silza Tramontina, coordenadora do Departamento de Psiquiatria Infantil e Adolescência da Associação de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, diz que tanto a crença das crianças quanto o afeto familiar delas dependem do exemplo que têm:
— Se os pais não acreditam em Jesus Cristo, não incentivam a fé, os filhos não vão acreditar. O mesmo acontece em relação aos laços familiares. É importante para as crianças esse ambiente lúdico, de brincadeira e fortalecimento dos laços. Elas se sentem mais seguras quando percebem que a família está unida.
O mito do Papai Noel
Na cabeça da Maria Clara, oito anos, não há menor possibilidade de o Papai Noel ser uma invenção dos adultos. Dia desses, ela discutiu com a vizinha da mesma idade que insistia em dizer o contrário.
— Tu acha que meu pai iria comprar uma bicicleta? Tu acha que meu pai iria comprar uma piscina? — questionou a pequena, subindo o tom da voz, convicta de que os presentes dos últimos dois natais chegaram de trenó.
Moradores de Campo Bom, no Vale do Sinos, Rafael de Lima, 34, e Ana Paula Monteiro, 33, nem pensam em contar à filha quem deu os regalos. Querem prolongar sua ingenuidade pelo tempo que for possível. Às vezes, eles se veem às voltas com as meninas e precisam tergiversar para que Maria Clara e a irmã, Camile Vitória, quatro anos, sigam crendo no velhinho barbudo. Na última abordagem da primogênita, Rafael explicou que Noel faz parte do espírito natalino e encerrou o assunto sem espaço para novas perguntas.
A retórica é um pouco diferente na casa dos Vinder München. Lá, a estratégia, por enquanto, é jurar de pés juntos que, mais do que existir, ele observa cada má-criação. Psicóloga e professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Ângela Seger diz não haver uma só maneira, certa ou errada, de agir. Ela usa sua experiência pessoal para demonstrar. Quando um de seus pequenos entrou em casa incrédulo com o coleguinha que creditava aos pais os presentes natalinos, ela esperou que o próprio filho desse a resposta.
— Ele me contou que rebateu o amiguinho dizendo que “existia, sim, Papai Noel”. Então, a resposta estava dada. Ele queria continuar acreditando e mostrou que não estava preparado para uma explicação diferente daquela — pondera Ângela.
A fantasia está ligada ao desenvolvimento da criatividade, por isso a psicóloga considera saudável estimular a crença. Apesar do apelo comercial, o Natal também desperta sentimentos bons como esperança, solidariedade e respeito ao próximo, reforça. Ela destaca, porém, que se a família discorda da celebração e não vê sentido em cultivá-la, uma das maneiras é deixar a criança descobrir aos poucos.
— Contar que Papai Noel não existe pode ser um choque. Dá para dizer que ele faz parte da imaginação das pessoas, por exemplo. Ou seja, encontrar maneiras menos agressivas. Quando a criança pergunta, é porque já pensou sobre. Então, dá para devolver a pergunta e ver o que ela pensa sobre aquilo antes de qualquer coisa — sugere.
Denise Quaresma, da Universidade Feevale, complementa dizendo que as fantasias são importantes por proporcionarem “um espaço criativo para a elaboração de traumas e realizações”. Assim como suas colegas de profissão Ângela e Silza, Denise entende que não há idade correta para serem apresentados à realidade:
— Os pais devem respeitar a necessidade das crianças de agarrarem-se a fantasias, contanto que não seja um delírio muito fora da realidade. A fantasia do Papai Noel está respaldada socialmente. Não se trata de um delírio. Portanto, enquanto necessitar da fantasia, a criança pode mantê-la.
Como lidar com o consumismo
Parecida nas duas famílias é a maneira de lidarem com o consumismo. As filhas de Rafael e Ana acreditam que Papai Noel, por atender a muitas crianças, só pode dar um presente para cada. Na casa de Daniel e Bárbara, quando o pedido ao bom velhinho extrapola o orçamento, o presente é negociado abertamente. Esses acordos entre crianças e adultos são elogiados pelas psicólogas Ângela e Denise. Elas consideram importante que, juntos, pais e filhos encontrem alternativas para presentes caros.
— É nesse momento que vamos apresentando a realidade para elas — pontua Ângela.
Sobre condicionar presentes ao bom comportamento, a professora da PUCRS não julga a prática danosa quando essa for uma estratégia esporádica. Caso contrário, corre-se o risco de o foco ser sempre o presente em vez de a mudança de atitude. Denise Quaresma observa que o consumo de bens caros não combina com sentimentos natalinos e que as crianças precisam aprender que presentear é dar amor:
— Um desenho feito por elas é um presente maravilhoso. Uma pedra do jardim enfeitada é um presente. Se os pais conduzem dessa forma, elas valorizam o que recebem.
Cabe ao pais, analisa a psicóloga da Feevale, mediar o consumo e apontar aos filhos quando o valor é exagerado.
— Temos de ter bom senso, pois a compulsão é instaurada nas crianças desta forma, consumindo desmedidamente — reflete.
A psiquiatra infantil Silza Tramontina complementa:
— Mesmo quem pode não deve encher as crianças de presentes. O desejo, a espera e a ansiedade pelo presente são legais e fazem bem. Geralmente, os exagerados são os pais. Crianças não precisam de excesso de brinquedos. Precisam de atenção e amor.