À primeira vista, Irmã Dulce era uma figura miúda e frágil conhecida por sua fé em Deus e devoção aos mais pobres de Salvador. Mas quem conviveu com a freira conheceu uma mulher bem-humorada que gostava de futebol, tocava sanfona, dava apelidos e fazia piadas até mesmo com presidentes da República.
Ela foi canonizada neste domingo (13), em cerimônia chefiada pelo papa Francisco, no Vaticano, após ter dois milagres reconhecidos pela Igreja Católica. Irmã Dulce (1914-1992) tornou-se a primeira santa brasileira.
A Igreja Católica anunciou em 2011 a beatificação da freira, reconhecendo o seu primeiro milagre. O caso aconteceu em 2001, em Sergipe, quando as orações a Irmã Dulce teriam feito cessar uma hemorragia em Claudia Cristina dos Santos, que padeceu durante 18 horas após dar à luz o seu segundo filho.
Em 2019, foi reconhecido o segundo milagre: depois de 14 anos convivendo com uma cegueira causada por um glaucoma, o maestro Jose Maurício Moreira recuperou a visão em 2014.
Com uma grave conjuntivite, ele colocou uma imagem de Irmã Dulce sob os olhos e suplicou que as dores cessassem. No dia seguinte, ao acordar, a nuvem esfumaçada que ele enxergava foi se dissipando e ele voltou a enxergar. Os médicos não encontraram explicação para a cura.
Filha de uma família de classe média alta, Irmã Dulce foi batizada com o nome Maria Rita. Teve uma infância considerada normal para os padrões da época, mas que foi o oposto do que se esperava de uma menina dentro da conservadora sociedade baiana do início do século 20.
Gostava de correr descalça nas ruas, fazer guerras de mamonas com os amigos, molhar-se nas fontes das praças, empinar pipa, além de jogar bola no Campo da Pólvora, um dos principais largos da região central de Salvador.
O futebol foi uma de suas primeiras paixões e serviu como válvula de escape para superar a morte de sua mãe, Dulce Maria, que não sobreviveu a uma hemorragia pós-parto quando Maria Rita tinha sete anos.
Criada a partir de então pelo pai, o dentista Augusto Lopes Pontes, sua diversão era ir ao estádio nos fins de semana ver os jogos do Ypiranga, na época o time mais popular da Bahia.
Na beira do gramado do Campo da Graça, berrava e vibrava com os gols de Apolinário Santana, o Popó, um dos primeiros jogadores negros do futebol baiano.
Na adolescência, deixou de lado o futebol e passou a se dedicar a trabalhos sociais junto com a sua tia Maria Magdalena, que a levou para visitar cortiços no bairro de Brotas.
Depois de prestar os votos e tornar-se freira, nos anos 1930, descobriu a música como instrumento de evangelização. Irmã Dulce não tinha formação teórica em música, mas tinha bom ouvido. Gostava de Beethoven e logo aprendeu a tocar harmônica e sanfona.
Na vida missionária, levava a sanfona para tocar modinhas para os presos na penitenciária onde prestava assistência social. Nos anos 1960, após fundar um orfanato na cidade de Simões Filho, animava as crianças tocando e dançando música.
Em 1947, quando atuava do Círculo Operário da Bahia, fundou o grupo musical Milionárias do Ritmo, formado por operárias e freiras. O conjunto se apresentava antes da exibição de filmes no Cine Roma, cinema fundado para arrecadar fundos para a entidade.
Para conseguir recursos para suas obras sociais, Irmã Dulce não tinha preconceito e abria espaço até para novidades como um tal rock'n'roll. Foi no Cine Roma que aconteceram as primeiras apresentações de Raul Seixas, que na época liderava o conjunto Raulzito e os Panteras.
O diretor do Círculo Operário, frei Hildebrando Kruthanp, foi contra os shows de rock no local. Mas Irmã Dulce bancou as matinês e assinou o contrato com o grupo liderado por Raul. Não há registros, contudo, de que a relação entre a futura santa e o autor de Rock do Diabo tenha ido além da burocracia.
Em suas empreitadas para arrecadar recursos para suas obras sociais, costumava fazer troça com os comerciantes. Uma vez, ao ir à loja de ferramentas de Abelardo Barbosa e não encontrá-lo, deixou uma carta: "Senhor Abelardo. Paz e bem! Isto é um assalto! Estou levando uma furadeira".
Suas piadas não poupavam nem os presidentes da República. Ao presidente Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), que afirmou à jovem freira que ela tinha ganhado um avô, não se fez de rogada: "Meu avô, sua neta está devendo muito". E pediu 6,5 milhões de cruzeiros para finalizar a nova sede do Círculo Operário.
Ao presidente João Figueiredo (1979-1985) cobrou a liberação de recursos para a ampliação do Hospital Santo Antônio. O presidente retrucou, dizendo que precisaria assaltar um banco para conseguir o dinheiro, ao que ouviu de resposta: "Me avise que eu vou com o senhor".
Outra face de seu bom humor era a mania de dar apelidos. A funcionária Walkíria Maciel, que se tornou sua confidente e tinha alguns quilos a mais, era chamada pela freira de "Esqueleto". Já a freira Emerência, que já tinha passado dos 90 anos, ganhou a alcunha de "Garotinha".
Na velhice, quando o organismo começava a fraquejar, resolveu apelidar as partes do próprio corpo: os pulmões eram chamados de "jamelengos", as pernas de "mariquinhas" e o coração de "joãozinho".
Aos problemas que surgiam no dia a dia, buscava encará-los com espírito leve. Quando era informada por um funcionário que faltava pão, por exemplo, mandava-o rezar que o problema se resolveria.
Situação semelhante aconteceu com Bernardo Gradin, presidente da Granbio e ex-presidente da Braskem que atuou como estagiário nas obras de ampliação do hospital Santo Antônio.
A reforma foi feita pela construtora Odebrecht, mas custeada com recursos de doações. Um dia, Gradin procurou Irmã Dulce para informá-la que o cimento para a obra havia acabado.
Ela segurou a sua mão e começou a caminhar pelo hospital. Entrou na ala de pacientes com deficiência mental, onde fez carinho e deu de comer às crianças. Depois, seguiu para a capela, onde ajoelhou e começou a rezar.
Duas horas depois, olhou para o jovem estagiário e arrematou: "Você viu que Deus me deu muitos problemas para resolver. O cimento você resolve, né"?
E assim foi feito.