Por Dom Jaime Spengler
Arcebispo metropolitano de Porto Alegre, primeiro vice-presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)
Por sua natureza, “a mulher é capaz de trazer harmonia à criação”, reconheceu o papa Francisco. É ela “que nos ensina a acariciar, a amar com ternura e que faz do mundo uma coisa bela”. Ainda mais beleza reconhecemos no mundo quando uma dessas mulheres decide fazer mais. Transforma sua vida em um incansável gesto de carícia e ternura pelos mais necessitados. Ela é o Anjo Bom da Bahia, nossa Irmã Dulce.
Maria Rita de Souza Brito Lopes nasceu em 26 de maio de 1914. Formou-se professora em 1933. No mesmo ano, ingressou na Congregação das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição da Mãe de Deus. Era costume da época assumir outro nome quando alguém era admitido à Vida Consagrada. Maria Rita escolheu o nome da mãe: Dulce. Faleceu em 13 de março de 1992, em Salvador (BA).
Irmã Dulce tinha corpo franzino, mas uma força interior estupenda. No final dos anos 1940, não tendo onde abrigar um grupo de doentes, solicitou de sua superiora autorização para acolhê-los em um galinheiro, situado ao lado do Convento Santo Antônio, em Salvador. Ela transformou o galinheiro no maior hospital da Bahia. Uma iniciativa sustentada pela fé e pelo exemplo dessa mulher que se empenhou por percorrer seus dias fazendo o bem, a exemplo de Jesus Cristo, que “passou por entre nós fazendo o bem” (At 10, 38) e que “fazia bem todas as coisas” (Mc 7,37).
Hoje, a Associação Obras Sociais Irmã Dulce (OSID) atende diariamente a cerca de 2 mil pessoas, realiza 12 mil cirurgias por ano, além de 18 mil internações. Tornou-se centro de atendimento médico-hospitalar, cuja missão é atender, sobretudo, aos mais pobres. Ela jamais deixou de cuidar de quem mais precisa.
Em 2014, o maestro José M. B. Moreira, com 50 anos, estava cego, à causa de um glaucoma. Desejoso de recuperar a visão, recorreu à Irmã Dulce, e obteve a graça. A medicina reconheceu no fato um milagre.
Diante desse caso, a Arquidiocese de Salvador encaminhou processo à Congregação para a Causa dos Santos, em Roma. E, após minuciosa análise, foi reconhecida a grandeza dessa pequena grande mulher. Apresentado o resultado dos estudos, o papa Francisco decidiu inscrevê-la no catálogo dos santos e santas. Isso se dará durante celebração litúrgica solene na Basílica de São Pedro, em Roma, neste domingo (13/10). O Anjo Bom da Bahia será a primeira mulher nascida nas terras de Santa Cruz a ser declarada santa pela Igreja Católica.
Embora de constituição física frágil e com a saúde debilitada, viveu 78 anos dedicando-se ao cuidado dos que eram ainda mais frágeis. É que essa mulher, embora não tenha formulado, compreendeu que, quando a “gente cuida da dor de alguém, Deus cuida da dor da gente”.
Essa mulher, embora não tenha formulado, compreendeu que, quando a 'gente cuida da dor de alguém, Deus cuida da dor da gente'.
Irmã Dulce fez de sua vida um exercício constante de misericórdia, que é “a mais importante e talvez a única lei da vida da humanidade” (Dostoiévski). Dando continuidade à missão da Igreja, ela soube encarnar formas concretas de ação que não representam “uma aproximação meramente sentimental às necessidades do ser humano, mas sim, no conjunto, um modo de compreender a natureza humana, suas necessidades e os seus limites; elas sobretudo promovem uma sociedade mais humana, justa, feliz e solidária” (J.M. Laboa).
Essa baiana fez da bem-aventurança da misericórdia – “sede misericordiosos como vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36) – sua regra de vida. Compreendeu que decisivos na vida são o amor e a misericórdia.
A burocratização do âmbito social e sanitário, até certo ponto inevitável, cria novos problemas, que culminam em um sistema frio, impessoal e anônimo. Diante da crescente intervenção do mau capitalismo nos serviços sociais e de saúde, o exemplo de Irmã Dulce traz à luz um modo de ser e de cuidar do irmão, que expressa uma saudade inata em todos nós: de um mundo harmonioso, respeitoso e autenticamente humano.
Numa sociedade marcada pela busca do alto desempenho e da produtividade desmedida, vai se impondo sempre mais a tendência de promoção de toda forma de desvinculação das negatividades.
Ora, a negatividade é a força vital da vida! Saber fazer-se próximo das situações de fragilidade permite crescer na percepção do que verdadeiramente conta na existência humana: a caridade. São Paulo afirma que permanecem três coisas: “a fé, a esperança e a caridade. Mas a maior delas é a caridade” (1Cor13, 13).
Apoiada na fé, sustentada pela esperança, Irmã Dulce se fez caridade e misericórdia. Trata-se “de uma força extraordinária, que impele as pessoas a comprometerem-se, com coragem e generosidade, no campo da justiça e da paz. É uma força que tem sua origem em Deus, Amor eterno e Verdade absoluta” (Bento XVI).
A partir deste domingo, podemos clamar “Santa Dulce dos Pobres, roga por nós”, para que tocados pela graça sejamos capazes de abraçar a causa dos que mais precisam, e nos empenhar por um Brasil mais justo e solidário.