A discussão não é nova, porém toma novas dimensões e ganha outros contornos a cada dia: a relação entre crianças/ adolescentes e a tecnologia é vista com cautela por especialistas. Para além da exposição excessiva às telas, com prejuízos no desenvolvimento comprovados pela ciência, o uso das novas ferramentas traz preocupações extras, como exposição da imagem dos pequenos na internet, bem como a disseminação indevida dessas fotografias na rede. Em tom de alerta, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), trouxe o assunto para o centro dos debates durante o 39º Congresso Brasileiro de Pediatria, que acontece nesta semana em Porto Alegre.
Termos como "sexting", "grooming" e "cyberbullying" foram o tema principal de uma palestra apresentada por Marco Antônio Chaves Gama, presidente do Departamento Científico de Segurança da SBP. Todos eles são preocupantes e têm repercussões em diversas esferas da vida da criança/ adolescente, podendo acompanhá-las até a vida adulta. Um dos exemplos citados pelo médico é o "sexting", troca de mensagens ou imagens de teor sexual.
— É a forma da sexualidade do adolescente no mundo digital. Ele se expõe com facilidade através de nudes (imagens da pessoa nua) e acredita que, ao enviar essa foto, a pessoa do outro lado será cuidadosa e vai guardá-la, porém isso normalmente não acontece. Essas imagens podem durar anos e aparecer no futuro, quando a pessoa fizer uma entrevista de emprego, quando estiver em um outro relacionamento e chegar ao máximo de surgir para os filhos dessa pessoa — diz.
A disseminação dessas fotografias, acrescenta o especialista, pode ainda resultar em outros dois problemas: a sextorsão e o cyberbullying. O primeiro, explica Gama, é quando a pessoa que detém essa foto passa a chantagear ou extorquir o fotografado. Em sua apresentação, o médico destacou que esse ciclo de abuso pode perdurar no decorrer dos anos, contribuindo, inclusive, para o suicídio. Já o segundo, é a "versão digital" da violência, humilhação e agressão cometida contra uma pessoa.
— Crianças e adolescentes não têm ferramentas para lidar com decepções e frustrações. Isso pode levar à tristeza, à ansiedade e, em casos extremos, ao suicídio. Tirar a própria vida em decorrência do cyberbullying é frequente, mas muitas vezes isso não é notificado — fala Gama.
Má-intenção e pedofilia: um alerta
Reduzir distâncias físicas é uma das várias vantagens que a tecnologia trouxe à vida cotidiana. No entanto, muitas vezes essas possibilidades são aproveitadas por pessoas mal-intencionadas ou mesmo pedófilas. É mais ou menos isso que define o "grooming", que é descrito como o conjunto de técnicas de sedução usados por adultos nas redes sociais para atrair e se aproximar de crianças ou adolescentes.
Usando nomes e idades fictícios, o indivíduo, geralmente do sexo masculino, se aproveita das fragilidades da vítima, tanto pessoais quanto familiares. Assim, cria vínculos com ela a ponto de ser considerado um confidente.
— À medida que ele consegue informações, como onde os pais da vítima trabalham, por exemplo, ele tem argumentos para fazer exigências e ameaças — explica o médico.
Essas intimidações, na maioria das vezes, têm como objetivo uma relação sexual. As maiores vítimas são meninas, entre 11 e 17 anos.
Conversa aberta
Prevenção ainda é a palavra de ordem quando falamos das armadilhas que as crianças e adolescentes estão expostos com o mau uso das tecnologias. A boa e velha conversa ainda é a melhor opção para alertá-los sobre os cuidados que se deve ter ao navegar pela internet. É preciso falar e explicar abertamente o que significam esses termos e quais as consequências que eles podem causar. Para casos de crianças ou adolescentes que já foram alvo dessas ações, a recomendação de Gama é o acolhimento.
— Adolescente não tem probleminha, só problemão. Quando tem espinha no rosto, ele acha que vai ser feio para o resto da vida e sofre muito. A grande questão dessa idade é que ele está com o cérebro em fase de amadurecimento, o que aumenta a distância para os adultos. Essas crianças vítimas têm que ser acolhidas. Elas estão no limite e se os pais aumentam a pressão em uma hora dessas é um perigo. O erro não é delas, o erro é de quem tramou (o grooming ou sexting, no caso) — finaliza o médico.
Abra o olho
Alguns sinais podem indicar problemas. Os mais comuns são: má alimentação - tanto o excesso quanto a escassez -, queda no rendimento escolar, isolamento social, irritabilidade.
Seja exemplo
Não adianta cobrar que os filhos saiam da internet se os pais estão sempre conectados. Gama sugere que os parentes façam uma autoanálise do uso que fazem da tecnologia: será que isso está servindo de exemplo?
Especialistas mobilizados
Ler uma história para os filhos é muito mais importante do ponto de vista do desenvolvimento do que deixar o pequeno com um celular em punho, afirma a pediatra e médica de adolescentes Susana Graciela Estefenon, da sucursal gaúcha da SBP. Em conjunto com outros especialistas da SBP-RS, ela elaborou a base técnica de um projeto de lei (PL) que foi protocolado na última terça-feira (8) na Assembleia Legislativa e que alerta para os riscos da exposição infantil aos dispositivos eletrônicos. O PL, de autoria do deputado Pedro Pereira (PSDB), tem como objetivo estampar nas embalagens de celulares, tablets e televisores vendidos no Estado alertas sobre o tempo de exposição aos produtos e impactos que ela traz à saúde infanto-juvenil.
— Não é conveniente e nem recomendável que menores de dois anos utilizem tecnologias digitais — destaca Susana. — Estamos dando orientações para pais, pediatras e até para adolescentes sobre como se relacionar com a tecnologia, que é maravilhosa e tem um aspecto muito positivo, porém, precisamos aprender a limitar o uso por idade — completa a médica.
Os efeitos físicos - e perigosos - do excesso de uso das tecnologias são obesidade, que pode levar ao desenvolvimento de doenças cardiovasculares, transtornos do sono e depressão, elenca Susana.
Recomendações da SBP*
- Desencorajar, evitar e até proibir a exposição passiva em frente às telas digitais, com exposição aos conteúdos inapropriados de filmes e vídeos, para crianças com menos de dois anos, principalmente durante as horas das refeições ou uma a duas horas antes de dormir.
- Limitar o tempo de exposição às mídias ao máximo de uma hora por dia, para crianças entre dois a cinco anos de idade.
- Crianças entre zero a 10 anos não devem fazer uso de televisão ou computador nos seus próprios quartos.
- Adolescentes não devem ficar isolados nos seus quartos ou ultrapassar suas horas saudáveis de sono à noite. Estimular atividade física diária por uma hora.
- Conversar sobre as regras de uso da internet, configurações para segurança e privacidade e sobre nunca compartilhar senhas, fotos ou informações pessoais ou se expor através da utilização da webcam com pessoas desconhecidas, nem postar fotos íntimas ou nudes, mesmo com ou para pessoas conhecidas em redes sociais.
*As recomendações fazem parte do Manual de Orientações “Saúde de Crianças e Adolescentes na Era Digital”, disponível no link.