O movimento #AnimalNãoÉCoisa ganhou as redes sociais e, na última semana, o Senado aprovou o PLC 27/2018, projeto de lei que classifica os animais como sujeitos de direitos e não mais como coisas. Uma das principais consequências desta mudança acontecerá, por exemplo, em casos de divórcio. Os bichos de estimação antes partilhados como bens móveis, como são os sofás e as geladeiras, agora integram as discussões nas Varas de Família. O fato pode parecer uma novidade e até causar espanto em alguns, mas para um ex-casal de Porto Alegre compartilhar a guarda dos "filhos de quatro patas" se tornou uma rotina há dois anos.
Em 2016, a operadora de caixa Guaciara Avila, 38 anos, e o engenheiro mecânico Thierri Moraes, 30 anos, findaram uma união que durava oito anos. Durante o relacionamento, eles adotaram dois cães: a Julie, uma Beagle comilona e tinhosa, e o Kowalsky, um Sem Raça Definida (SRD) que é pacato e adora um colo. Quando terminaram a relação, eles chegaram ao consenso que era o vínculo deles que havia acabado, não o com os pets. Decidiram procurar uma advogada para formalizar a situação na Justiça e, desde então, dois anos se passaram e o compromisso de dividir a guarda e respeitar os prazos de cada um é mantido ininterruptamente.
Compromisso firmado em juízo
A advogada Claudia Barbedo, especialista em direito de família, foi escolhida para conduzir o então inédito caso no Estado. Ela conta que foi a primeira vez que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ- RS) se manifestou pela inclusão dos animais dentro da Vara da Família para regulamentar a visitação e o sustento e acabou se criando ali o entendimento judicial.
— A decisão do Tribunal de Justiça, no momento que acolheu a regulamentação da convivência dos animais dentro da dissolução da união estável, acabou por ampliar o conceito de família que não se restringe mais somente a humanos, mas também inclui os animais — explica.
Ela conta que outro fato que garante o ineditismo da situação é o compromisso que é mantido com a decisão judicial:
— Muitos ex-casais tentam este tipo de responsabilidade logo que terminam as relações, mas em pouco tempo, por diversos motivos, encerram o acordo. Agora, a Guaciara e o Thierri já estão em novos núcleos familiares bem estabelecidos e até hoje, dois anos depois, mantém a realidade. A única mudança é que antes as trocas eram semanais e agora estão de 15 em 15 dias.
O acertado em juízo era que cada um ficaria uma semana com os pets e as trocas seriam sempre aos domingos. Quem estivesse com o animal era o responsável por levá-lo de volta. Ficou combinado dar a mesma ração e que cada um compraria a comida que teria em casa.
Já atendimento médico, vacinas e antipulgas têm o valor dividido entre os dois.
No acordo mediado pela advogada, ficou acertado que, se um dos tutores mudasse de cidade, este seria o responsável por levar e buscar o animal. A única mudança no trato desde então aconteceu no final de 2018, quando optaram por ficar com os pets 15 dias para cada um.
— Com essa mudança observamos que eles relaxam mais com as rotinas de cada casa e isso deixa eles menos estressados — explica Guaciara.
Filhos ajudam nos novos rumos dos pais
A operadora de caixa conta que teve todo apoio dos pais e do irmão quando contou em casa que decidiu ter a "guarda compartilhada" — oficialmente chamada de regulamentação da convivência e sustento —, pois também entendiam que os cães viraram membros da família. Fora de casa, no entanto, nem sempre foi fácil.
— As vezes os motoristas de aplicativo cancelavam as corridas e acabava pegando táxi. Isso saía muito mais caro, pois eles cobravam uma taxa de pet pra cada um deles. Tem também as pessoas que estranham e olhavam torto quando eu contava a história. Acham bobagem, frescura, que é só um bicho e que era só cada um de nós ficar com um. Dava vontade de dar resposta, mas segurava — diz.
Para ajudar na logística e não precisar encarar nariz torto de motoristas, Guaciara comprou um carro.
— Eles gostam de passear de carro. A Julie adora pôr a cara na janela e pegar o vento — conta.
A aquisição do veículo não foi a única mudança que ela fez por causa dos dois cães. Hoje, a mãe dos pets está num relacionamento com o segurança Celso Jr., 37 anos, e diz que teve uma ajudinha para se decidir pelo novo namorado.
— Eu escolhi o meu novo companheiro com ajuda da Julie, que gostou dele. Eu confio muito no sexto sentido dela, por isso se latisse pra ele as coisas não iam adiante — brinca.
Thierri também está em um novo relacionamento. Ele namora a professora Priscila Nitibailoff, 33 anos, que, como não poderia deixar de ser, ama animais.
— Hoje eles são mais dela do que meus. Eles são tão ligados que eu brinco que, se nos separarmos, a guarda compartilhada da Julie e do Kowalsky vai ser entre ela e a Guaciara — diz Thierri.
Ele conta que toda a rotina de vida, obrigatoriamente, passa pelo bem estar dos filhos pets:
— Sempre que me mudo é pensando em um lugar que fique bom pra eles. Acabamos de mudar para um lugar maior pra eles terem mais conforto.
Julie, a arteira; Kowalsky, mais sereno
A conversa com Guaciara foi num dia e a com o Thierri foi em outro, mas parecia que estavam falando ao mesmo tempo quando traçavam o perfil dos dois cães. Para ambos, Kowalsky é tranquilo, quer um colo e está feliz com um carinho na barriga. Já Julie merece um livro só pra ela.
— A danada come de tudo. Uma vez deixei uma nega maluca em cima da mesa para esfriar e ela arrastou uma cadeira pra subir na mesa. Quando voltei ela tinha comido o bolo inteiro ainda quente — diz Guaciara, rindo.
E se engana quem pensa que a travessura foi obra do acaso. A cadela, que não à toa é roliça e pesa 17 quilos, é reincidente no crime.
— Uma vez, em 2016, levei a Beagle no aniversário de uma prima e ela subiu na mesa e roubou uma torta fria. Comeu inteira. A aniversariante levou numa boa, mas a tia que fez a torta não gostou muito — lembra Thierri.
Projeto de Lei reconhece animais como seres capazes de sentir emoções
O PLC 27/2018, do deputado Ricardo Izar (PP-SP), aprovado no plenário do Senado no dia 7 de agosto, criou o regime jurídico especial para os animais de estimação e alterou a forma como são vistos perante a lei.
Conforme a proposta os pets ganham proteção legal em casos de violação e passam a ser reconhecidos como seres sencientes, ou seja, capazes de sentir emoções e passíveis de sofrimento.
— É um avanço civilizacional. A legislação só estará reconhecendo o que todos já sabem: que os animais que temos em casa sentem dor e emoções. Um animal deixa de ser tratado como uma caneta ou um copo e passa a ser tratado como ser senciente — disse o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), relator do projeto na Comissão de Meio Ambiente.
O material voltou para apreciação da Câmara, pois teve uma alteração. Foi a emenda apresentada pelos senadores Rodrigo Cunha (PSDB-AL), Major Olimpio (PSL-SP) e Otto Alencar (PSD-BA) para ressalvar as manifestações culturais, como a vaquejada, e a atividade agropecuária do alcance do projeto.
Guarda não pode considerar apenas bem-estar do tutor
A mudança de como os animais são vistos perante a lei se encaixa em um contexto em que muitos adultos optam por não terem filhos ou adiam ao máximo essa decisão. Segundo dois levantamentos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), atualmente os lares do Brasil têm mais tutores de pets do que pais de filhos. De acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS 2013), em 2015 eram 52 milhões de animais contra os 45 milhões de crianças, entre 0 e 14 anos, dos dados divulgados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD).
O veterinário, advogado e professor universitário da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), Renato Pulz, 51 anos, explica que esses fatos criam um universo novo e traça um paralelo com a atual Constituição:
— Antes da promulgação do texto constitucional de 1988, as crianças também eram vistas como coisas e hoje, passados 30 anos, vemos quanto se avançou no bem-estar delas. Vejo que com os animais podemos ir pelo mesmo caminho.
Sobre a "guarda compartilhada", Renato lembra que as constantes mudanças podem ser estressantes para os bichos de estimação e reforça o cuidado que será necessário.
— Cada animal vai responder de um jeito, mas com certeza será um fator que vai influenciar na vida emocional deles, principalmente nos gatos que sofrem mais com mudança de ambiente. Os cachorros até se adaptam um pouco melhor. Agora é bem provável que o juiz vá pedir uma avaliação de um profissional veterinário que seja perito em medicina veterinária legal para avaliar o bem-estar dos bichos com critérios bem objetivos em relação a comportamento, rotina e hábitos alimentares. É preciso levar em consideração o que vai ser melhor para estes filhos, não só no que é bom para os pais — afirma.