Há 17 anos, quando tinha trinta anos aproximadamente, Cindy e sua parceira decidiram ter filhos. O casal passou horas estudando perfis de doadores de esperma nos Estados Unidos, até finalmente se decidir por um homem com registros médicos impecáveis e histórico familiar com poucos problemas de saúde. Era um doador anônimo que elas conheciam apenas pelo número de identificação.
Cindy deu à luz um menino saudável. O casal usou o mesmo doador para uma nova concepção – e não demorou para que elas estivessem criando dois meninos.
Quando cresceram, os meninos encontraram alguns de seus meios-irmãos inserindo o número do doador de esperma em um banco de dados on-line. Os pais de todos optaram por fazer um teste de DNA. Os resultados não foram os esperados: os garotos de Cindy não tinham nenhum parentesco com as outras crianças. Chegou-se à conclusão de que o banco de esperma não vendera a ela o material do homem escolhido com tanto cuidado, mas sim o de um doador completamente diferente.
Ela descobriu a identidade do homem cujo esperma lhe foi fornecido e constatou que o histórico médico dele estava longe do ideal. Uma avó tinha morrido de câncer no cérebro aos 60 anos e um avô tinha sido acometido pela doença de Alzheimer. Outra avó morrera de doença cardíaca.
— Eu me senti como se eles tivessem contaminado o pool genético dos meus filhos — disse Cindy sobre o banco de esperma. (Ela pediu que seu nome completo não fosse publicado para proteger a privacidade das crianças.) — Não escolhi alguém com histórico familiar de câncer no cérebro. Jamais teria escolhido esse doador. Eles deveriam ter vergonha de oferecer essa pessoa no site.
Não existem estatísticas nos Estados Unidos sobre o número de crianças nascidas anualmente por meio de inseminação artificial, embora alguns especialistas tenham estimado algo em torno de 60 mil. E ninguém faz o registro de quantas pessoas descobrem que o esperma comprado não é do doador escolhido. Entretanto, nesta era de teste de DNA facilitado, as anedotas estão se acumulando.
Um número cada vez maior de pais, ou às vezes de filhos concebidos por meio de doadores, está descobrindo, normalmente décadas após o fato, que receberam o esperma errado do banco de esperma ou da clínica de fertilidade. A constante incidência de casos está levantando questões difíceis sobre se essas instituições deveriam ser mais bem regulamentadas.
"Essas histórias são devastadoras e muito desafiadoras para a justiça, além de serem muito mais corriqueiras do que se possa imaginar", declarou Dov Fox, diretor do Centro de Diretrizes Legais para Saúde e Bioética da Universidade de San Diego, acrescentando que "os bancos de esperma são pouco regulamentados, e esses tipos de trocas ou confusões não são completamente imprevisíveis se considerarmos o número dessas instituições que usam métodos ultrapassados de identificação de espécimes, como papel e caneta".
Nascimentos negligentes?
Melissa, mãe solteira de Massachusetts, foi informada de que tinha recebido o esperma errado da Repro Lab Inc., clínica de fertilidade de Nova York, quando a filha, já com 21 anos, fez um teste de DNA. Ela foi conectada a uma meia-irmã que conhecia o número de doador do homem anônimo. Não era o que a mãe tinha escolhido na clínica décadas antes.
"Recebi o esperma do doador errado e jamais teria sabido se minha filha não tivesse feito o exame de DNA", contou Melissa, que pediu que seu nome completo fosse omitido como forma de proteger a privacidade da filha. "Você não sabe o que está herdando – e pode prejudicar seu filho involuntariamente. É diferente de um estupro. Você está se submetendo a um procedimento médico. Mas está colocando essa coisa dentro do corpo, e me senti fisicamente violada", continuou.
Awilda Grillo, presidente da Repro Lab, disse que o esperma recebido por Melissa há 25 anos não foi coletado pela empresa, mas sim por um banco na Califórnia. "Não embalamos a amostra. Demos a ela o que foi encomendado", garantiu Grillo.
Melissa entrou com uma ação de 40 páginas contra a Repro Lab no Departamento de Saúde do Estado de Nova York, mas a única coisa encontrada contra o laboratório foram as péssimas condições de armazenamento de dados.
Melissa descobriu que há poucas soluções legais para os pais que recebem o esperma errado. "Eu não estava interessada em processar, pois amo minha filha. Além disso, teria de processar por nascimento negligente, e, se não há uma questão de saúde envolvida, não há, portanto, nenhuma infração da parte deles", esclareceu.
Em 2014, Jennifer Cramblett, de Uniontown, Ohio, entrou com uma ação contra o banco de esperma Midwest, na grande Chicago, depois de descobrir que ela e sua parceira tinham recebido esperma de doador errado. De fato, o filho do casal era obviamente birracial, apesar de terem escolhido um doador branco. O processo expôs que os números dos frascos de esperma eram escritos a caneta nos tubos de armazenamento e os registros do local não eram informatizados.
Entretanto, o juiz arquivou o caso, alegando não se tratar de "nascimento negligente", já que o filho de Cramblett não apresentava problemas de saúde. Enquanto os clientes, como ela, acreditam que obter esperma indevido constitui fraude, os tribunais há muito sustentam que não há danos se a criança for saudável.
"O juiz pode argumentar: você não conseguiu o doador que queria, mas como pode dizer que teve prejuízo? Como você sabe que um doador é melhor do que o outro?", questionou Sonia Suter, professora de direito na Universidade George Washington e especialista em bioética e políticas de saúde.
Suter acrescentou: "Não existe um mecanismo legal aqui para determinar o que parece ser um claro erro. O problema é o nível de regulamentação ser muito baixo. Existe a possibilidade de quebra de contrato se você disser não ter recebido o esperma desejado, mas pode ser difícil de provar."
Ela ainda disse que alguns observadores da indústria defendem um ramo separado da FDA (Food and Drug Administration – agência federal norte-americana responsável pelo controle de alimentos e remédios) para regular a indústria da fertilidade, incluindo bancos de esperma.
Eles estão lidando com seres humanos. Podem estar comprando e vendendo, mas isso é muito mais do que um carro e tem um impacto enorme.
SONIA SUTER
professora de direito, Universidade George Washington
"Eles estão fazendo o que deveriam? Estão entregando o produto prometido? Eles estão lidando com seres humanos. Podem estar comprando e vendendo, mas isso é muito mais do que um carro e tem um impacto enorme", ponderou Suter.
Se, por um lado, o FDA regulamenta tecidos reprodutivos (como esperma e óvulos), por outro tem autoridade limitada para prevenir a transmissão de doenças transmissíveis, como Aids e hepatite. A agência também não regulamenta o processo de seleção de doadores, apenas assegura que os requisitos básicos de elegibilidade de saúde e idade sejam atendidos, explicou Stephanie Caccomo, porta-voz da organização.
A médica Louise P. King, especialista em ética no Centro de Bioética da Universidade de Harvard, aconselhou que, quando as clínicas cometerem erros, as pessoas que acreditarem ter recebido o esperma errado devem contactar a Sociedade Americana de Medicina Reprodutiva (ASRM, na sigla em inglês) ou a FDA para que o caso possa ser investigado.
"Eles têm a obrigação de descobrir o que levou a isso e evitar que volte a acontecer no futuro", asseverou. Mesmo assim, a ASRM é uma organização profissional que apenas sugere diretrizes para bancos de esperma, médicos e clínicas, mas sem poder regulatório.
Uma 'afinidade genética'
Mudanças legais parecem estar a caminho, desencadeadas, em parte, por um caso profundamente perturbador.
Nos anos 1970 e 1980, um médico especialista em reprodução humana de Indianápolis usou seu próprio esperma, em vez do disponibilizado pelo marido ou doador anônimo, para engravidar pelo menos 46 mulheres.
O dr. Donald Cline se declarou culpado de duas acusações criminais de obstrução de justiça e admitiu ter mentido a investigadores do estado sobre o uso de seu próprio esperma para inseminar pacientes. Ele renunciou à sua licença médica e recebeu uma sentença de um ano de suspensão.
Promotores públicos estaduais disseram que não foram capazes de pressionar por uma sentença mais severa porque não havia leis estaduais que proibissem essa conduta. Sessenta pessoas agora acreditam que esse ex-médico possa ser o pai biológico delas, de acordo com testes de DNA.
Matt White, de 36 anos, de Indianápolis, descobriu estar relacionado a Cline após ler uma notícia sobre o caso. Ele imediatamente percebeu que a clínica foi a usada pela mãe para engravidar. "Não posso acreditar que alguém, muito menos um médico de confiança que faz passar essa imagem pública impecável, teria como hábito violar a mais íntima das experiências na vida de uma mulher, que é ter um filho", argumentou.
White e alguns de seus recém-descobertos meios-irmãos pressionaram para que a "fraude da fertilidade" se tornasse crime em Indiana. A medida virou lei após receber assinatura do governador no mês passado.
A lei abrange casos de fraude que envolvem procedimentos médicos, remédios ou materiais reprodutivos humanos, como esperma, óvulos ou embriões. Uma condenação pode ser punida com seis meses a dois anos e meio de prisão, além de multa de até dez mil dólares (quase 39 mil reais).
A lei faz de Indiana um dos poucos estados americanos a regulamentar a concepção via doador. Em 2016, o estado da Califórnia aprovou uma lei que oferece algumas proteções a famílias que escolheram a reprodução assistida para ter filhos.
Contudo, Fox, o professor de direito, acredita que as leis deveriam ser mais abrangentes. Ele propôs um novo conceito: "procriação confundida". Os tribunais reconheceriam danos quando as escolhas reprodutivas fossem confundidas ou comprometidas pela negligência ou má conduta de terceiros.
Recentemente, esse conceito foi testado na Suprema Corte de Cingapura, que, em 2017, recebeu um caso envolvendo um casal que recebera esperma acidentalmente trocado por uma clínica de fertilidade e deu à luz uma criança mestiça. A corte descreveu um novo caso de dano – dano por "afinidade genética" – e concedeu ao casal uma indenização de 30 por cento sobre o custo de criar a criança, aproximadamente 233 mil dólares (quase um milhão de reais).
Fox acredita que esse tipo de ação legal nos tribunais dos EUA pode ajudar os clientes ofendidos a combater uma infinidade de ações e inações cometidas por clínicas – falhar ao testar doadores de esperma para detectar condições graves e hereditárias, por exemplo, ou negligenciar métodos confiáveis para identificar as amostras de esperma.
"Existe toda uma constelação de práticas imprudentes que resultaram em genitores em potencial tendo filhos com metade de seu DNA proveniente de pessoas que não são nada como lhes prometeram", concluiu Fox.
Por Jacqueline Mroz