Pelas mãos de Gelson Weschenfelder, o filósofo dos quadrinhos, a história da Mulher-Gato ajudou uma adolescente de Novo Hamburgo a confrontar a condição de vítima de abuso sexual, denunciar o agressor e dar novo rumo à própria vida.
Ainda na semana passada, o professor de 39 anos, morador de Canoas, estava na Inglaterra apresentando esse trabalho na icônica Universidade de Oxford. Os britânicos mostraram-se interessados em parcerias para aplicar a metodologia desenvolvida pelo gaúcho, por meio da qual jovens da periferia buscam superar as próprias adversidades inspirados no exemplo de figuras como o Homem-Aranha, o Batman ou os X-Men.
Licenciado em Filosofia, Gelson começou a trabalhar com as HQs em sala de aula quando lecionava no Ensino Médio. Usava as revistinhas, sua grande paixão, para introduzir conceitos como ética, moral e responsabilidade. Depois, levou o tema para o mestrado e o doutorado em Educação, cursados na Universidade La Salle. Credenciou-se como doutor, no ano passado, com a tese Os super-heróis das histórias em quadrinhos como recursos para a promoção de resiliência para crianças e adolescentes em situação de risco, um dos trabalhos vencedores do prêmio Jovem Cientista 2019, concedido pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
A orientadora dele na universidade, Maria Ângela Mattar Yunes, trabalhava com resiliência, e o aficionado por quadrinhos, proprietário de uma coleção com 4 mil itens, percebeu que esse era um tema onipresente nas histórias de super-heróis.
— Fiz um levantamento e descobri que 98% dos heróis da Marvel e da DC passam, na origem, por uma situação de adversidade e risco. Eles têm de se tornar resilientes antes de se tornar super-heróis. A primeira grande aventura deles é superar esses dilemas e demônios internos — explica.
Fiz um levantamento e descobri que 98% dos heróis da Marvel e da DC passam, na origem, por uma situação de adversidade e risco. Eles têm de se tornar resilientes antes de se tornar super-heróis. A primeira grande aventura deles é superar esses dilemas e demônios internos.
A partir dessa constatação, Gelson idealizou uma intervenção em escolas da periferia, para testar o poder que os quadrinhos poderiam ter para ajudar jovens a superar os problemas. O projeto piloto ocorreu em 2016, em duas escolas públicas de Novo Hamburgo: Santo Afonso e Arnaldo Grin.
Foram apenas três encontros com alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA). No primeiro deles, Gelson levou à turma várias histórias de superação dos heróis. As narrativas abordavam situações comuns ao universo adolescente, como o preconceito e o bullying. No caso da Mulher-Gato, o tema era o da exploração sexual. Antes de virar heroína, ela havia sido uma prostituta, explorada por um cafetão. Gelson pediu que, inspirados nos quadrinhos, os alunos trouxessem na aula seguinte um texto relatando suas próprias adversidades.
Movida pela história da Mulher-Gato, uma adolescente de 17 anos redigiu um relato assustador, que incluía um pai que espancava a mãe e abusos sexuais sofridos desde os oito anos de idade, praticados por um vizinho.
— O trabalho despertou nela a consciência de que aquilo não era natural — conta Gelson.
A adolescente fez uma denúncia, auxiliada pela assistente social e a psicóloga que acompanhavam o projeto. Em 2017, com Gelson como testemunha, o abusador foi julgado e condenado à prisão.
Outras histórias semelhantes apareceram na turma, e o professor tentou apresentar a cada jovem um super-herói com o qual ele podia se identificar para superar suas agruras. Os relatos feitos pelos alunos foram publicados (sem a identificação deles) e quatro das histórias viraram uma revista em quadrinhos, com roteiro de Gelson e desenhos de Jader Corrêa. Quando o professor entregou um exemplar à menina que era abusada, ela desabou no choro ao ver sua história retratada em desenhos. Gelson temeu ter dado um tiro no pé, mas logo viu que estava enganado.
— Ela me abraçou e agradeceu por ter transformado a tragédia dela em arte. A gente avalia aquilo como uma catarse, uma liberação de tudo que ela vinha aguentando por sete ou oito anos. Para algumas pessoas, ela distribuía a revista e dizia que era a história dela. Hoje, está com 19 anos e faz um trabalho em escolas, identificando crianças que dão sinais de também sofrer abusos. Ela quer ser uma heroína — explica.
Depois do projeto piloto, Gelson levou o método para a Escola Municipal João Paulo I, de Canoas, desta vez fazendo um trabalho de oito encontros, no qual os estudantes criavam as próprias histórias em quadrinhos. Havia uma vítima e um praticante de bullying na turma, e os dois produziram uma narrativa juntos.
— A ideia era que eles pudessem ser os seus heróis. Na minha tese de doutorado, mostro que os super-heróis podem ser exemplos para a superação, com um impacto positivo na vida dos adolescentes. É de suma importância fazer essa intervenção nos ambientes escolares, porque as adversidades sociais impactam no desenvolvimento cognitivo e fazem os alunos abandonarem os estudos — conta o professor.
Método já é aplicado fora do Estado
Atualmente, Gelson dedica-se a um pós-doutorado na Universidade La Salle, um trabalho que inclui formar outros professores para espalhar seu método. Já há seis escolas, duas delas fora do Estado, aplicando a ideia. Nos próximos dias, o filósofo começa a fazer a formação de mais 60 professores, de 24 colégios diferentes. Há outros 50 profissionais na lista de espera.
Ouvi professores, doutores, dizerem que eu devia deixar os quadrinhos de lado e fazer pesquisa a sério.Mas isso não importa. O que importa é ver a gurizada dizer que esse trabalho criou um sentido para suas vidas.
Fã dos quadrinhos desde os quatro anos de idade, quando obteve a revistinha número 1 da sua coleção, uma edição de 1974 dos X-Men, o professor conta que enfrentou alguma resistência para levar adiante a mistura de filosofia com super-heróis. Nas escolas, colegas de docência torciam o nariz, dizendo que quadrinhos eram mero entretenimento e estimulavam a violência. Seis cursos de pós-graduação rejeitaram seu projeto de pesquisa, antes de ele ser aceita pela Universidade La Salle, alegando que HQs não eram objeto de pesquisa acadêmica:
— Ouvi professores, doutores, dizerem que eu devia deixar os quadrinhos de lado e fazer pesquisa a sério. A vontade era falar que eu estava ganhando um prêmio com essa brincadeira, estava apresentando na Inglaterra essa brincadeira. Mas isso não importa. O que importa é ver a gurizada dizer que esse trabalho criou um sentido para suas vidas.