"Vejo você por dentro, seu coração sorrindo. Por todos os lugares, os olhares são de amor". Esses são os versos iniciais do poema Saudade, escrito pela educanda Karen Dutra, 34 anos, da Escola de Educação Especial Nazareth Apae Porto Alegre, localizada no bairro Glória, na zona sul da Capital. O texto está exposto aos olhos de quem quiser ver na recém-inaugurada biblioteca Ciranda das Letras, que atende 265 estudantes.
O espaço que servirá de inspiração e sala de trabalho para os próximos sonetos de Karen está em funcionamento desde o mês passado, mas foi oficialmente aberto na manhã de ontem, com a presença de apoiadores, professores, representantes do poder público e, claro, dos estudantes. O projeto dessa biblioteca foi totalmente voltado para a acessibilidade de pessoas com limitações intelectuais e múltiplas, ou seja, que apresentam dificuldades cognitivas e que exigem maior tempo para aprenderem determinadas lições e atividades do cotidiano.
Por isso, há, na nova biblioteca, um palco para a interpretação e contação de histórias, além de pufes, mesas para a realização de oficinas, um painel sensorial que os ensina a interpretar determinados sons, a saber a funcionalidade do interruptor de luz e no qual aprendem a fechar e a abrir compartimentos.
Para o diretor da Apae Porto Alegre, Vitor Castilho, a inauguração deste ambiente é um ganho para aqueles que são assistidos pela entidade.
— Antigamente, parte do nosso acervo de livros estava disposto na sala da coordenadora pedagógica. As professoras pegavam essas obras e as trabalhavam em sala de aula. Agora, vir até a biblioteca faz parte da grade curricular dos nossos alunos. Cada turma tem seu horário para estar aqui usufruindo dela — diz Castilho que ressalta ainda que o espaço dá independência aos educandos.
Antigamente, parte do nosso acervo de livros estava disposto na sala da coordenadora pedagógica. As professoras pegavam essas obras e as trabalhavam em sala de aula. Agora, vir até a biblioteca faz parte da grade curricular dos nossos alunos.
VITOR CASTILHO
Diretor da Apae Porto Alegre
A reforma foi feita em 90 dias. Com os R$ 70 mil angariados por meio do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA) foi construída e inaugurada hoje, além da biblioteca do colégio Nazareth, a da Escola Especial Doutor João Alfredo de Azevedo, no bairro Vila Nova, na zonal sul da Capital, que atende outros 160 estudantes. O projeto pensado para as duas instituições vem sendo trabalhado desde 2017 pela bibliotecária das Apaes Porto Alegre, Eliete Brasil, que contou ainda com a ajuda voluntária da arquiteta Ieda Dapper e da estudante de Arquitetura e Urbanismo Priscila Brasil, diz a funcionária.
— Este é um trabalho feito a muitas mãos. Todas as obras aqui presentes são fruto de doação e muitas pessoas ajudaram com doação de um ou dois dias de trabalho para fazer, por exemplo, a curadoria das obras certas para o nosso público-alvo — revela Eliete, que conta ainda que as doações excedentes foram encaminhadas ao Banco dos Livros, organização que recebe títulos de todos os tipos e monta espaços de leitura.
Além dos estudantes terem livre acesso aos livros e poderem levá-los para casa, os pais podem fazer o mesmo para que promovam contação de histórias dentro de casa. Para que os educandos, que tem entre sete e 76 anos, sintam-se ainda mais instigados a se aproximarem do hábito da leitura tanto da visual quanto imagética foi adotado um sistema de classificação, que já é utilizado na biblioteca municipal de São Paulo.
Neste método, são associadas as três primeiras letras do tipo de história infantil e infantil-juvenil ao desenho que ela representa. Por exemplo. Todas as obras relacionadas a contos de bruxas são identificadas com as letras "BRU" e com o desenho de uma bruxa ao lado. Assim, eles podem retirar os livros e, posteriormente, colocá-los no lugar novamente, explica a bibliotecária.
— Somado a isso, procuramos dispor a maioria das obras com a capa virada para os alunos, assim elas se tornam mais atrativas aos estudantes, e eles sentem-se estimulados a estender o braço, a querer ver e a ler — observa Eliete.
Espaço de leitura, mas também de produção literária
Quando os laços que, simbolicamente, lacravam a porta foram puxados por dois educandos, as turmas dos mais variados ciclos de aprendizagem logo tomaram conta das diversas cadeiras, pufes e do palco teatral que há no ambiente. Karen, a poeta da escola, declamou o poema Saudade por completo e foi aclamada pelo público presente. Na sequência, começou a andar pelo espaço admirando cada detalhe da nova casa de trabalho para seus versos.
Escritora desde os 2011, ela sofreu um acidente de trânsito aos três anos de idade, então, ficou com sequelas motoras e cognitivas. A produção dela é extensa e já lhe rendeu o título regional da competição de poema entre as unidades da Apae Porto Alegre, Canoas e Esteio. Agora, na segunda quinzena de maio, a artista concorrerá na etapa estadual. Ansiosa pelo desafio que se aproxima, ela lembra com carinho do dia que venceu a etapa local e fala das suas inspirações para a escrita.
— Eu escrevo quando estou triste. Esse poema que declamei mostra isso, esse sentimento. Agora, espero ir bem na competição. Assim como na primeira vez, em que fiquei tão feliz, que cheguei até a perder meu sapato depois do pulo que dei — diz entre risadas Karen.