Há cerca de um mês, o pedreiro Adroaldo Boeno, 35 anos, foi tomado pela mais genuína preocupação paterna quando recebeu, pelo WhatsApp, uma mensagem do narrador Sassá Leite, conhecido narrador de rodeios de Cruz Alta: "Temos que falar. É sobre o Kauã".
O primeiro pensamento atravessou a cabeça de Adroaldo como um raio: o que o filho aprontou? Kauã Boeno, 13 anos, até ali, só era motivo de orgulho: no meio tradicionalista, é uma das grandes promessas nacionais no tiro de laço — modalidade na qual o competidor cavalga com velocidade e tenta laçar um boi em disparada.
O garoto, que está no 7º ano do Ensino Fundamental, começou a acompanhar o pai em rodeios aos quatro meses de idade. Aos quatro anos, já laçava sozinho vaca parada (animal de madeira usado em competições) e, aos seis, ganhou a primeira competição correndo atrás de um animal já vivo. A partir deste momento, Kauã arrematou troféu atrás de troféu, inclusive em modalidades de adulto. Hoje, são incríveis 545 espalhados pela casa de dois quartos no interior de Cruz Alta, onde vive com o pai, a madrasta e a irmã de três anos. Ele é descrito pelos adultos como um garoto "na dele", muito carinhoso, praticante diário de laço, no entardecer, e que fica emburrado quando perde um torneio. No futuro, pretende ser médico veterinário.
— No ano passado, uma égua caiu no Kauã, e ele chegou a ter uma fratura exposta no pé esquerdo. O médico pediu para ele parar de laçar. Mas, no fim, ele laçava com bota ortopédica — relembra a madrasta, a auxiliar de limpeza hospitalar Etiane da Silva Rosa, 33 anos.
O narrador Sassá Leite classifica Kauã como um "fenômeno no laço brasileiro hoje".
— Ele não é nem promessa, já é realidade. É um laçador completo: ele laça com qualquer laço, em qualquer cavalo, em qualquer tipo de prova. É um menino que se destaca, inclusive entre os adultos.
Animal doado é de linhagem genética nobre
Adroaldo não recebera a mensagem pelo WhatsApp por uma suposta reclamação contra o garoto. Pelo contrário: a ideia era premiá-lo. O empresário e criador de cavalos Valtoir Ferreira da Silva, 65 anos, ouvira a narração de Sassá, relatando a história humilde da família Boeno, em um rodeio transmitido ao vivo pelo YouTube. Emocionara-se com os percalços de quem, com orçamento apertadíssimo, viajava de ônibus para outros Estados, dependia de carona de conhecidos, tomava emprestado pangarés nas cidades dos campeonatos pela impossibilidade de levar o próprio animal. Tocado, decidiu doar a Kauã um cavalo da raça quarto de milha, cujo valor pode ultrapassar os R$ 50 mil. O animal é de linhagem genética nobre, filho de um campeão mundial.
— O guri é craque não só em laçar, mas também em montar. Ele chega a competir com uns pangarezinhos e mesmo assim ganha, inclusive de adultos — diz o empresário, espantado.
O gesto foi recebido com incredulidade pela família do cavaleiro. Foi necessária a palavra de intermediários que conheciam o empresário para assegurar que o presente não era pegadinha.
— Achei que era golpe, a gente sabe o valor de um cavalo quarto de milha. Como poderia ser verdade? — diz a madrasta.
— Isso só acontece no Caldeirão do Huck, não na vida real — completa.
— A gente no fim ficou muito feliz. É para cima e para baixo com o Kauã, ele vem se destacando desde os seis anos de idade. Quem nasce com o dom… — reflete o pai, Adroaldo.
Choro de felicidade no primeiro encontro
GaúchaZH acompanhou a entrega do cavalo na quinta-feira (21) no haras de Valtoir, em Glorinha, na região metropolitana de Porto Alegre. Kauã saiu com pai, madrasta e a irmã, Luiza, três anos, por volta das 9h de Cruz Alta para uma viagem de quase cinco horas. No almoço, devoraram sanduíches no carro.
O jovem ginete é calado, mas sorri, escondendo o aparelho ortodôntico com os lábios. No carro em direção ao haras, apesar do silêncio, ele demonstra inquietação: mexe nas mãos, arruma a camiseta, abraça o encosto do banco da frente, olha pela janela a paisagem.
— Tô ansioso para chegar lá. Um presente desses… É um cavalo que nunca imaginei que iria ganhar — resume.
Às 14h, a família chega a Glorinha. Valtoir recepciona os viajantes, ao que o garoto responde educado, em poucas palavras. Está pensando no presente que ganhará. O grupo se dirige ao estábulo que, em vez de madeira, é formado por grandes pedras cor de cinza. Em frente à baia com uma porteira de grossa madeira, o capataz escova o rabo do cavalo de cor marrom. A crina do animal é brilhosa como se tivesse participado de um comercial de xampu para cabelo.
De personalidade lacônica, Kauã reage de forma contida: esboça um sorriso de lábios fechados, em um semblante de vitória. O animal é encarado por breves segundos, em silêncio. A promessa do laço passa a mão no traseiro do cavalo, acaricia-lhe o lombo e, em seguida, o rosto do bicho. Quando os dedos passam pela crina do novo parceiro, ocorre o inesperado: um choro irrompe do peito de Kauã como se transbordasse de uma represa. O jovem cavaleiro coloca a mão direita nos olhos para conter as lágrimas.
— Eu sei que é um momento muito importante para ti. Mas, para mim, também — diz Valtoir, com a voz embargada por lágrimas.
— Eu também, com a tua idade, queria ter muita coisa e não podia ter nada. Mas aí ouvi o Sassá (narrador) contar tua história e foi como se um filme passasse na minha cabeça. Tu estás feliz, mas eu estou mais feliz do que tu.
— Muito obrigado — responde o menino, contendo o choro que, naquele momento, contaminou todos os presentes.
Luiza, a irmãzinha de Kauã de três anos, questiona: "Por que todos choram, mamãe?".
— É de felicidade, minha filha — responde Etiane.
Uma empresa ainda doará um ano de ração para ajudar nos custos. O cavalo, diz Kauã, receberá o nome de Nuk: é uma referência ao filme "Andar Montar Rodeio — a Virada de Amberley", exibido na Netflix, sobre uma campeã de rodeio que sofre um acidente de carro, perde os movimentos das pernas e luta para voltar a cavalgar.
A família de Kauã espera que, com um animal de raça mais nobre, o laçador participe de competições com prêmios maiores, o que ajudaria a sustentar o animal de raça.
Após o primeiro contato, garoto e cavalo se dirigem para o redondel, espécie de curral circular onde Kauã fará a doma natural. Em suma, o garoto obriga Nuk a correr em círculos, primeiro em sentido horário e depois anti-horário. Depois, quando as energias do cavalo estão gastas, o ginete monta e começa a entender o ritmo do mamífero. Primeiro, eles troteiam. Depois, cavalgam em alta velocidade, quando Kauã franze o cenho, coloca os lábios para fora como se assoviasse e emana tamanho foco a ponto de soar em transe.
— Tô muito feliz. Nas laçadas lá para cima, no Paraná e Mato Grosso, eu tinha que laçar com cavalo que eu nem conhecia. Não vai mais ser assim — resume Kauã.