A formatura no Ensino Médio de Marlete Oliveira em uma escola de Arvorezinha, no Vale do Taquari, foi em uma sexta-feira. Depois, foi um corre-corre. Na segunda-feira, ela partia sozinha da cidade, aos 17 anos, para Lajeado. Tinha um objetivo claro: romper com o destino penoso de uma família de mulheres que trabalhavam ou haviam trabalhado como empregadas domésticas. Até ali, tudo se encaminhava para a mesma direção: desde os 12, a adolescente negra tinha casas para limpar sozinha – inclusive, dos colegas da escola pública. Em determinado período, além de estudar pela manhã e fazer faxina, trabalhou em uma fábrica de congelados. Mas nunca faltou a uma aula: estava determinada a fazer diferente.
— A mulher negra na escola não é vista pelos guris — diz Marlete. — Eu era a guria que tinha amigas bonitas, mas não era a bonita. Para socializar, eu tinha que ser inteligente. Me procuravam para passar cola ou para aproximar os guris das minhas amigas. Nas casas em que eu trabalhava, alguns colegas bagunçavam o que eu tinha arrumado para me incomodar e outros ignoravam que eu era empregada. Só que isso era ignorar a desigualdade que existia entre nós.
Marlete ganhou uma bolsa para um cursinho em Lajeado e, para sustentar-se, trabalhou cortando bordas de tecidos em uma fábrica de calçados. Sofreu preconceito por ser negra, seguiu em frente. Aos 20 anos, começou a estudar terapia ocupacional na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e entrou no movimento estudantil e negro. Depois, veio à Capital para cursar uma concorrida especialização em saúde pública na UFRGS. Hoje, aos 27 anos, cursa mestrado em psicologia social na mesma instituição.
Rompeu o ciclo e constrói um futuro diferente para si, mas não esquece de olhar para trás. Participa de ONGs que lutam contra a desigualdade racial, tomou a frente em atos e protestos, usa redes sociais para militar e se tornou colunista em um site. A partir de janeiro, irá trabalhar na Secretaria da Saúde de Porto Alegre na promoção de saúde da população negra. Enxerga-se como uma ativista contra o racismo, um esforço rotineiro, exaustivo, herdado de seus ancestrais e de sua família, formada de homens ausentes e de mulheres pobres – e fortes.
— Para a comunidade negra, a própria sobrevivência já é militância. É uma resposta às adversidades que vivemos, mas também uma herança dos meus ancestrais e da minha família. Ser ativista faz parte do cotidiano, de eu estar viva — pontua.
Para a comunidade negra, a própria sobrevivência já é militância.
MARLETE OLIVEIRA
Mestranda em psicologia social pela UFRGS, 27 anos
A Sunbrand aponta que o ativismo existe em todas as gerações, mas as formas de luta é que mudaram conforme a época. Nos anos 1960, os hippies iam às ruas para pedir paz mundial. Os filhos protestam em avenidas contra a corrupção. Os netos, via redes sociais.
— Os baby boomers e os X têm um ativismo hippie, com a perspectiva de um mundo sem guerra. Para os Y e os Z, o ativismo é por direitos mais individuais do que globais: quando os mais novos querem discutir gênero, sexualidade, raça ou uma cidade mais segura, há um pano de fundo individual, de preocupar-se com o próprio bem-estar — diz o gerente executivo de estratégias da Sunbrand G5, Alex do Nascimento.
Marlete também milita em discussões teóricas. Cita o lugar de fala para dizer, por exemplo, que não é possível refletir sobre psiquê negra com base no filósofo francês Michel Foucault (“ele não escreve para nós”).
Ao fim da conversa, GaúchaZH pergunta onde Marlete gostaria de ser fotografada. A escolha é a Praça do Tambor, próximo à Usina do Gasômetro. No século 19, o local era conhecido como Praça da Forca, em virtude das execuções que ocorriam por ali – a maioria, de pessoas negras:
— É um lugar de resistência.
Características por geração
Baby boomer: protestou nas ruas por mais liberdade, não costuma usar redes sociais.
X: protesta nas ruas e nas redes sociais em prol de causas políticas ou ambientais.
Y: defende múltiplas causas e se filia a cada uma: animais, ambientais, políticas, sociais, de mobilidade, de gênero, de raça, contra o trabalho escravo.
Z: consciente de suas posições, prefere viver com coerência no dia a dia em vez de se expor nas redes sociais.