Clássico da literatura infantil brasileira publicado em 1983 por Ana Maria Machado, O Menino que Espiava pra Dentro está no centro de uma discussão que surgiu nas redes sociais, quando uma mãe postou um relato segundo o qual seu filho perguntou "se era verdade que se engasgasse com uma maçã e ficasse sem respirar ele conseguiria ir até o encontro do seu mundo da imaginação". O livro conta a história de Lucas, um menino que gosta de sonhar e que, com a imaginação, aprende a criar um mundo melhor, onde tudo é liberdade. Lá pelas tantas, ele come uma maçã para ingressar no mundo dos sonhos – "um processo poético para a criança entrar no mundo da imaginação que faz alusões às histórias da Branca de Neve ou da Bela Adormecida", segundo comunicado da Global, selo responsável pela edição mais recente, que foi indicada como leitura paradidática em diversas escolas. Para o psicanalista e escritor Celso Gutfreind, a acusação de que o livro incentiva o suicídio é infundada. Leia o texto de Gutfreind a seguir.
Vamos ao tema de novo. Ele é fundamental e sempre volta. Muitos pais estão acusando o livro O Menino que Espiava pra Dentro (Global Editora, 30 páginas, R$ 25, em média), de Ana Maria Machado, de incitar o suicídio (leia sobre o caso ao final deste artigo). Há pouco tempo, com a obra de outro autor, a queixa era estimular o incesto. Agora, na página 23, o jovem protagonista come uma maçã a fim de entrar no mundo dos sonhos. E nem que bebesse cicuta...
Eu quero é tocar fogo nesse apartamento, cantou em verso Chico Buarque através da música, essa arte mais popular. E, justamente por cantá-lo, não há de incendiar coisa nenhuma. Atos violentos – homicídio, suicídio, feminicídio – costumam ocupar justamente o espaço onde faltou pensamento e sentimento. O suicídio em adolescentes é uma situação grave e cada vez mais frequente. Mas não tem a ver com a presença de nenhuma arte, e sim com a falta dela. De mentalização. Subjetividade. Passado o entusiasmo do Iluminismo, hoje sabemos que o ser humano age em função do que não sabe. Age por impulsos, a não ser que os conheça melhor.
A psicanálise é uma forma de conhecê-los. A arte é outra, mais antiga e maior ainda: não à toa, alimentou e alimenta a psicanálise, embora ambas tenham lacunas, como o escritor Saul Bellow explicou para o colega Philip Roth a propósito de artistas que não deixam de sofrer e até mesmo de cometer o suicídio. No entanto, poder expressar é meio caminho andado para não fazer besteiras maiores no caminho. Para não agir ou agir bem.
Arte não incita suicídio, racismo, fascismo, barbárie. A falta dela é que nos torna vulneráveis.
CELSO GUTFREIND
Psicanalista
Um menino que morde uma maçã e zarpa do real para o simbólico jamais incitaria o suicídio. E nem que fosse uma cena de algum suicídio em si como, séculos antes, em Goethe com seu Werther. A onda de suicídios que o sucedeu assinala a falta precedente de mais Werthers, de mais literatura, de mais símbolos. Arte não incita suicídio, racismo, fascismo, barbárie. A falta dela é que nos torna vulneráveis.
Passados 250 anos, a situação piorou. Pais aparentemente esclarecidos reclamam de cenas de maçãs mordidas. Ou de sexo. E saem postando nas redes sociais o que ainda não é símbolo e nem terá tempo de ser, já que outra postagem impulsiva o sucede logo em seguida. E, fora do símbolo, não há salvação.