A Justiça gaúcha tomou uma decisão polêmica que pode encurtar, a partir de agora, o tempo de espera para que crianças sejam adotadas. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) decidiu, no último dia 17, que um bebê de cinco meses deveria ser colocado no Cadastro Nacional de Adoção (CNA) antes mesmo de os pais biológicos perderem, em definitivo, a guarda do menino. Os desembargadores da 8ª Câmara Cível interpretaram que o mais importante não eram os laços de sangue, mas sim que o bebê seria prejudicado se aguardasse o fim do processo em um abrigo. O juízo pode nortear outros casos semelhantes no Estado e no Brasil.
Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), uma criança só pode entrar no CNA, espécie de lista de espera informatizada que o aproxima de possíveis pais adotivos, após os pais biológicos serem destituídos e nenhum familiar ser capaz der assumir a responsabilidade. Em tese, a investigação sobre a possibilidade de ele ficar na família de origem deve durar no máximo 120 dias. Mas, na prática, pode levar anos. Enquanto isso, ele fica em um lar de acolhimento. A decisão do TJ-RS autoriza que a adoção ocorra sem que esse processo de investigação termine. O argumento é o artigo 227 da Constituição Federal, segundo o qual é dever do Estado assegurar o bem-estar da criança.
O caso em questão, que corre em segredo de Justiça, envolveu o menino João (o nome é fictício, para preservar a identidade da criança, em respeito ao ECA), nascido em janeiro com sífilis e uma anomalia que deixou seu pé torto. Os pais biológicos, viciados em drogas e moradores de rua, já tinham dado os outros filhos para a adoção – um vivia com a avó, e outro, em um abrigo. A combinação de entregar João a pais adotivos havia sido feita entre o casal antes mesmo de o menino nascer.
Quando João, com um mês de idade, ainda estava no hospital, em janeiro, o Ministério Público (MP) entrou na Justiça solicitando que os pais biológicos perdessem a guarda do menino e que ele entrasse no Cadastro Nacional. Uma das justificativas é de que ele precisava de acompanhamento especial o mais rápido possível.
Em primeira instância, o Judiciário acolheu todos os pontos, mas negou a inclusão de João na lista nacional de adoção, defendendo que o bebê deveria ir para um lar temporário até a confirmação da possibilidade de um familiar acolhê-lo.
O TJ-RS atendeu ao pedido do MP e autorizou em janeiro, mediante liminar (decisão imediata e provisória), que o processo de adoção seguisse. Como resultado, o bebê saiu da maternidade, ficou algumas semanas em um abrigo e, já em fevereiro, foi levado para a casa dos novos pais. Em maio, a 8ª Câmara Cível confirmou a decisão anterior de manter a criança no lar adotivo.
Em seu voto, o desembargador-relator José Antônio Daltoé Cezar afirmou que João deveria ter atendimento especializado não coberto pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Ressaltou, ainda, que o histórico familiar indicava que a criança iria para a adoção de qualquer forma – o pai havia consentido com a entrega do filho para um casal estranho à família.
"No caso em exame, deverá prevalecer o maior interesse da criança e não os laços consanguíneos, já que estes não garantirão à criança o desenvolvimento sadio e adequado. Permitir que a história se repita pela quarta vez com o final sendo mais do que previsível (...) não atende à Constituição", escreveu.
Em entrevista a GaúchaZH em seu gabinete, Daltoé diz que há, em nossa sociedade, uma tendência a considerar que o melhor lugar para a criança é sempre ao lado da mãe biológica, mesmo que ela não queira ou não tenha condições de criá-la. Questionado sobre a possibilidade de o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reverter a decisão e devolver aos pais ou a familiares a guarda da criança, ele diz que as chances são mínimas, porque o interesse já deveria ter sido manifestado.
— O ECA é muito protetivo. Em situações que sabemos que haverá destituição (dos pais), porque há histórico, não tem por que esperar o andamento desse processo, que leva anos, em um tempo em que a criança fica em um lar temporário, que não é o melhor lugar para ela. Não queremos que os filhos sejam tirados de suas famílias, mas que cada caso seja estudado individualmente e que o juiz possa decidir sem estar engessado — diz o desembargador, que é vice-presidente da Associação Brasileira de Magistrados da Juventude (Abraminj).
Daltoé havia decidido da mesma forma em um caso julgado na primeira quinzena de maio. Mas a decisão envolvendo o bebê João tem mais potencial para orientar futuros processos porque ocorreu em uma sessão didática, na qual a 8ª Câmara Cível explicou o caso a uma plateia de 300 estudantes de Direito.
Na visão da advogada e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), Maria Berenice Dias, a decisão do TJ-RS beneficiará as crianças que moram em lares temporários, à espera de serem adotadas.
— Se o Ministério Público entrou com ação para destituir a criança do poder familiar é porque já se esgotaram todas as possibilidades de ela ficar na família. O Estado não tem estrutura para investigar se um familiar pode ficar com a criança, quem deve fazer isso é a própria família. Se ninguém apareceu na maternidade para ficar com o bebê, por que não seguir no processo e entregá-lo a quem o quer? — questiona.
A promotora de Justiça da Infância e da Juventude de Porto Alegre Cinara Vianna Dutra elogia a decisão do TJ-RS e diz que o prazo de 120 dias para investigar a possibilidade de a criança ficar com a família quase nunca é respeitada pela falta de assistentes sociais, psicólogos, cartórios e defensores públicos.
— É uma decisão muito importante que dá respaldo a outros juízes. A inserção da criança em família adotiva antes da destituição do poder familiar (da família biológica) só vai ocorrer em casos extremos. Temos ações de destituição tramitando em Porto Alegre por cinco anos porque o Estado não dá conta. A criança foi tirada da família há anos porque não havia condições de ser criada, mas seguiu crescendo no abrigo, com as chances de ser adotada caindo — diz.