No pensamento exclusivamente positivo, acompanhado de um sorriso largo, a doméstica aposentada Maria Emília de Mendonça, de Novo Hamburgo, acredita ter encontrado o elixir da longevidade. Aliás, a descoberta já tem mais de um século! Dona de uma memória de causar inveja a qualquer jovem, Vó Dodoca, como é carinhosamente chamada, chegou aos 101 anos esbanjando vigor e vontade de viver.
— Sou uma pessoa que me alegro com o prazer dos outros, que tenho nas amizades a minha maior riqueza no mundo. Não vejo nada pelo negativo. Só, só, positivo — garante, antes de mais um sorriso a quem ainda possa ter qualquer dúvida da vitalidade dela.
Neta de escravos, Maria Emília nasceu em 1916, na zona rural de Gravataí. E acredita ter herdado do avô paterno, o alforriado Benedito Martins, o sangue longevo. Ele foi o único da família a cruzar a barreira dos cem.
— Mas ele já estava caduquinho. Eu, não! — faz questão de ressaltar Vó Dodoca, às gargalhadas.
Na memória afiada, recorda até de uma passagem aos cinco anos, quando acompanhava a mãe na entrega do milho num moinho d'água da região. Ela perdeu a matriarca para a gripe espanhola, dois anos depois. Desde então, foi criada pelo pai, o vendedor de verduras Antônio Benedito Martins, junto com as outras três irmãs. Analfabeto, Antônio tinha paixão por ver as pessoas lendo e exigiu das filhas que, ao menos, tivessem o mesmo gosto. Vó Dodoca cursou até o quarto ano, quando se mudou com a família para Porto Alegre para trabalhar como babá e, mais tarde, copeira de famílias tradicionais da Capital. Mas orgulha-se de seguir devorando livros até hoje, o passatempo predileto.
Enquanto morou em Porto Alegre, presenciou fatos históricos que foram transformando a cidade repleta de mato, como lembra, em selva de pedra, como constata hoje. Entre eles, a transformação dos Campos da Redenção, na década de 1920, em Parque Farroupilha, em 1935.
— O presidente Getúlio Vargas veio para a exposição do Centenário Farroupilha no parque. Fiquei a menos de 10 metros dele, que me acenou. Jamais esqueci aquele dia — comenta.
Outro momento da história que Vó Dodoca afirma ter marcado foi o período da Segunda Guerra Mundial. Na época morando no Vale dos Sinos, região de colonização alemã, ela lembra da proibição de ter qualquer peça em casa que lembrasse os alemães:
— Eu tinha uns panos de parede escritos em alemão que precisei esconder. Meu patrão escutava em alemão a guerra pelo rádio, só na madrugada, para ninguém saber. Foi um tempo difícil.
Noiva em fuga
Aos 24 anos, Vó Dodoca desistiu de casar faltando poucos dias para o enlace. Nem a casa construída pelo noivo especialmente para a nova família a fez seguir rumo ao altar. Tomada a decisão, caminhou durante cinco horas _ entre Morro Agudo, em Gravataí, até Vista Alegre, em Cachoeirinha _ para buscar o próprio registro de nascimento, que estava com o juiz responsável pelo casamento.
– No caminho, avisei ao noivo que não teria mais casório. Ele ficou indignado, mas sabia que eu mandava em mim! — conta.
Na verdade, Vó Dodoca já tinha um pretendente: o melhor amigo, João Manoel de Mendonça, com quem casou três anos depois. Antes, porém, exigiu dele que aprendesse a dançar. Festeira, ela não perdia um evento com dança na região de Gravataí e Porto Alegre. Assim como na juventude, a aposentada afirma aproveitar até hoje tudo o que a vida tem a oferecer, o que inclui participar de todos os festejos para os quais é convidada. Com João Manoel, falecido há 26 anos, teve cinco filhas biológicas — Nerci Joana, 72 anos, Marli, 66, Marlene, 64, Jaci e Mariza, falecidas —, uma adotiva, Valcira, 67 anos, sete netos, 11 bisnetos e quatro tataranetos.
"Me sinto jovem"
Católica e adepta da Seicho-No-Ie há quase três décadas, Vó Dodoca tem uma vida tranquila, apesar da agenda sempre repleta de atividades. Gosta de viajar _ Rio de Janeiro e São Paulo estão entre os passeios favoritos _, caminhar, ler, mexer na terra e visitar amigos e familiares. Vaidosa, vai ao salão de beleza uma vez por semana e não perde a oportunidade de trocar brincos e colares. Sem jamais ter fumado ou ingerido bebida de álcool, praticou hidroginástica até os 99 anos. Atividade que ainda pretende retomar, pois surgiu uma nova academia próxima de casa.
— Se estou com uma turma mais nova, sigo o ritmo dela. Só paro quando a turma para. Me sinto jovem _ garante.
— Ela tem mais gás do que toda a família reunida — afirma a filha Marli, aos risos.
Quando questionada pela reportagem o que faz para ter tão boa memória, Vó Dodoca resume:
— Não assisto tevê. Eu leio.
Sempre fazendo planos, a aposentada já prepara a próxima viagem. Quer conhecer Natal (RN) em maio de 2018, um mês antes dos 102 anos. Comemoração que deverá ser dividida em três ou quatro eventos, como tem sido nos últimos anos. Devido à quantidade de familiares e amigos, Vó Dodoca e as filhas fazem mais de uma comemoração. Cada uma delas recebe até 350 convidados.
— Sou grata por ter alegria o tempo inteiro. Sou grata à vida que tenho. Sou luz, e me purifico vivendo sempre dentro desta luz — filosofa.
Gratidão está entre as palavras mais repetidas pela senhorinha de voz mansa. Até hoje, ela agradece ao pai pela criação, à família, por estar sempre presente, e ao tempo, por ter concedido a ela ver a transformação do mundo por mais de um século.
As lições de Vó Dodoca
* "Sou uma pessoa que me alegro com o prazer dos outros."
* "Ter amigos é a coisa mais rica do mundo."
* "Não bebo, não fumo e como de tudo."
* "Não penso nada negativo. Só positivo."
* "Tenho muita gratidão aos pais."
* "Ajudo a quem precisa."
* "Não se assustemo. Se a bala vem, nós se abaixemo."