As fantasias de gari ou funcionário de lanchonete exibidas nos recreios escolares batizados de Se Nada Der Certo, os quais simulam o que alunos de Ensino Médio fariam se fossem reprovados no vestibular, ajudam a revelar mitos sobre o universo do trabalho no Brasil. Especialistas em gestão de carreiras e orientação profissional sustentam que nem sempre seguir uma atividade tradicional, de alta renda ou histórico na família significa ser bem-sucedido, e ressaltam que a falta de curso superior não é sinônimo de fracasso. A confusão sobre esses conceitos gera frustração e infla índices de desistência nas universidades.
A vice-presidente de Expansão da seccional gaúcha da Associação Brasileira de Recursos Humanos (ABRH-RS), Simone Kramer, observa que a definição de sucesso costuma ser mal interpretada. O tal "dar certo", no Brasil, é muitas vezes visto como abraçar a qualquer custo uma carreira tradicional a exemplo de medicina, direito ou engenharia.
– Ter sucesso depende de alcançar os seus objetivos, que variam de pessoa para pessoa. Quem disse que toda pessoa rica é feliz? – questiona Simone.
Para a vice-presidente da ABRH-RS, também é um equívoco a desvalorização social de atividades técnicas em favor do diploma universitário. Uma das consequências é o explosivo índice de desistência nas faculdades. Nada menos do que 49% dos universitários abandonaram seu curso de ingresso entre 2010 e 2014, conforme o Censo do Ensino Superior. A taxa é de 48,1% no Direito e chega a 56,4% nas Engenharias. Na Pedagogia, onde a vocação geralmente pesa mais do que o dinheiro, a taxa recua para 39,6%.
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Uma das razões para tanto abandono é a fragilidade do Ensino Médio, que não prepara adequadamente os estudantes para o nível seguinte, mas outra causa apontada pela psicóloga, consultora organizacional e de carreira Roberta Fernandes Lopes do Nascimento é a frustração com o curso escolhido com base em falsas premissas.
– Muitos jovens ainda definem a profissão por remuneração, status ou para seguir a tradição familiar. Uma das consequências é se decepcionar e trocar de curso – aponta Roberta.
Mas o que seria "dar certo" na vida? Para a palestrante comportamental e motivacional Carla Galo, é sair de casa para fazer algo de que se gosta, com uma remuneração suficiente para uma sobrevivência digna e lazer.
– Sucesso é atingir suas metas e ver propósito no que faz, trabalhar com brilho nos olhos – opina Carla.
Por esses conceitos, a foto de uma funcionária de um McDonald's de Uberlândia (MG) alimentando uma pessoa com deficiência (imagem que viralizou nas redes sociais em 2015 e voltou a ser compartilhada agora) pode representar bem o que é ser uma profissional exemplar. Atendentes de lanchonete, porém, estão entre os profissionais vinculados ao fracasso nos recreios à fantasia. Doutor em Sociologia e coordenador da Pós-Graduação em Sociologia da UFRGS, Fernando Cotanda identifica na "brutal desigualdade social" a origem do escracho público de certos trabalhadores:
– A desigualdade social, os preconceitos e a necessidade constante de distinção social têm raízes não apenas no escravismo e na sociedade colonial, mas também tem laços fortes com as nossas instituições modernas que produzem e reproduzem preconceitos e privilégios de classe, raciais, culturais, linguísticos e de gênero.
Adolescentes têm conhecimento superficial de profissões, dizem especialistas
Especialistas que auxiliam adolescentes a definir um rumo profissional acreditam que falta, por parte deles, um conhecimento mais aprofundado sobre as diferentes carreiras, suas próprias vocações e o que significa uma trajetória bem-sucedida.
Para o psicólogo Marco Teixeira, coordenador do Núcleo de Apoio ao Estudante e do Serviço de Orientação Profissional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a gigantesca quantidade de informações sobre o universo do trabalho na internet – ambiente familiar às novas gerações – não é devidamente aproveitada:
– Parte dos jovens pensa muito centrada em estereótipos na hora de escolher uma profissão. É um conhecimento não muito aprofundado, um pouco superficial, apesar da grande quantidade de informação disponível na internet hoje.
A falta de reflexão e de dados mais completos sobre mercado de trabalho, empreendedorismo e outros itens favorece, assim, a perpetuação de estereótipos pelos quais um advogado ou um médico, por exemplo, são sempre bem-sucedidos, enquanto um profissional de nível técnico é vinculado ao fracasso e à incapacidade de ingressar em uma universidade.
– Percebo que falta autoconhecimento e informação sobre as carreiras. O ideal é que houvesse orientação profissional desde o começo do Ensino Médio – argumenta a psicóloga e consultora organizacional Roberta Fernandes Lopes do Nascimento.
Teixeira ressalta que a escolha da profissão é um processo difícil por natureza em um momento da vida em que o adolescente ainda está se conhecendo e há muita pressão social por realização financeira ou pessoal. Por isso, uma eventual mudança de rumo não deve ser vista sempre como erro:
– O desenvolvimento da vocação se dá ao longo da vida inteira. Mas, quanto mais informação houver sobre uma carreira e quanto mais ela refletir as características pessoais, maior a chance de uma escolha bem fundamentada.
A palestrante Carla Galo lembra que, mesmo quando se escolhe uma atividade com a qual se tem afinidade, isso não garante uma vida constantemente feliz ou livre de percalços – e é normal que seja assim:
– Sempre haverá altos e baixos, não acredito em carreira linear. O importante é como você se recupera e o aprendizado que isso deixa.
TAXAS DE DESISTÊNCIA
Escolha errada da profissão é uma das razões apontadas para o alto índice de abandono ao longo dos cursos universitários:
Abandono geral 49%
Rede privada 52,7%
Rede federal 42,6%
Fonte: MEC