EB. A sigla simples que aparece em protocolos e manuais de Medicina disfarça a crueldade da doença que identifica: a epidermólise bolhosa. Tão complicada quanto o próprio nome, a enfermidade é uma sensibilidade anormal da pele que provoca bolhas em locais que sofrem o mínimo atrito, nas mucosas e no tubo digestivo, o que nos tipos graves leva a dificuldades de alimentação e deformações em pés e mãos. O quadro dos pacientes inspira cuidados constantes porque a pele está sempre machucada e precisa de curativos especiais.
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É diante deste inimigo que a família de Raíssa Victória de Oliveira Silva, seis anos, vem travando uma luta árdua desde o nascimento da criança. Filha de um gaúcho de São Luiz Gonzaga e de uma paulista, a menina motivou a campanha Para Poder Abraçar, na qual os pais arrecadam doações para que a menina possa ir aos Estados Unidos participar de um tratamento experimental, que envolve transplante de medula e um protocolo arriscado de quimioterapia e uso de imunossupressores.
Nessa batalha, a doença levou um revés nos últimos dias. Raíssa, que tem EB distrófica, poderá fazer o tratamento no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, custeado pelo Programa de Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (Proadi-SUS), ação do Ministério da Saúde em parceria com hospitais filantrópicos. Em outras palavras, o que custaria em torno de US$ 1,5 milhão, com o tratamento em solo norte-americano, sairá de graça para a família da menina.
Médicos do hospital paulista passaram por um treinamento minucioso com profissionais do centro de saúde da Universidade de Minnesota, que vêm conseguindo resultados promissores com esse tipo de cirurgia. O pai deverá ser o doador, e Raíssa, a primeira paciente de EB a passar pelo procedimento no Brasil. A família já está em São Paulo.
– A gente está muito confiante, e tenho certeza de que nossa filha será a porta de entrada para outras crianças na busca por tratamento – celebra o pai, Jonas Siqueira Silva, 37 anos.
A novidade que empolgou a família de Raíssa traz para os limites nacionais a esperança de melhora na qualidade de vida e, quem sabe, até de cura, para cerca de 583 pessoas que convivem com a doença no país.
– Até pouco tempo, não se sabia quantas pessoas no Brasil sofriam com EB. O cadastro, criado em 2013 por meio de uma busca ativa, já que não temos notificações, fez com que chegássemos nesse dado, mas sabendo das estatísticas mundiais, acreditamos que este número chegue a 1,6 (casos) mil no país – diz a médica especialista em dermatologia pediátrica Jeanine Magno Frantz, presidente da Debra Brasil, associação sem fins lucrativos que pretende ampliar as informações sobre EB.
Vítimas da desinformação
A epidermólise bolhosa é uma doença congênita com diferentes tipos e subtipos e não contagiosa. A fragilidade que impõe à pele dos que são acometidos pelo problema é proporcional à desinformação que circunda familiares e profissionais de saúde. Nas maternidades, muitos bebês com EB recebem os primeiros cuidados inadequadamente por pura falta de conhecimento de médicos e enfermeiros.
– Como eles têm a pele muito sensível, alguns nascem até com a pele em carne viva, não é qualquer material que pode ser usado. Esparadrapo não pode, porque quando for retirado, vai machucar. Sonda pode fazer bolha. Então, é preciso todo um suporte que hoje não existe e que garantiria maior sobrevida aos pacientes – diz a médica dermatologista Ana Mósca, da Sociedade Brasileira de Dermatologia, que atua no Hospital Municipal Jesus, referência em tratamentos pediátricos no Rio de Janeiro e que atualmente atende 110 crianças com EB.
A doença não é de notificação obrigatória no Brasil e também não há ações oficiais que divulguem dados, estudos e tratamentos a respeito do tema, salvo o trabalho solitário de algumas associações e de pais como os de Raíssa. No Rio Grande do Sul, onde há 35 casos de EB, a campanha da família de São Luiz Gonzaga é a que tem mais visibilidade e, ainda assim, muito mais conhecida na região do município.
– A crueldade dessa doença está exatamente na falta de informação – diz Regina Próspero, presidente do Instituto Vidas Raras, que trabalha na busca por atenção a doenças raras, grupo da qual a epidermólise bolhosa faz parte.
Regina ainda aponta outra consequência do desconhecimento da EB: a exclusão social. Mesmo a doença não sendo contagiosa, pacientes sofrem com situações constrangedoras. Um desses episódios ganhou debate nacional. Em 2013, a coreógrafa Deborah Colker e o neto de três anos, que sofre de EB, foram convidados a deixar um avião após não apresentarem atestado de que não havia risco de contágio.
Jeanine Magno Frantz, da Debra Brasil, ressalta que em muitos casos os pacientes de EB podem ter uma vida normal, bastaria que tivessem o atendimento adequado e que houvesse uma rede eficiente de acolhimento e informações. Essa falta de atenção estaria comprometendo, segundo ela, a própria inserção dessas pessoas no mercado de trabalho. Quase metade dos acometidos por EB no país tem entre zero e 15 anos.
– São pessoas que não têm nenhum comprometimento mental ou intelectual. Se fossem bem cuidadas, poderiam ter uma vida normal – diz.
Uma fundação no horizonte
Às vésperas de completar três anos, a campanha de Raíssa, Para Poder Abraçar, conseguiu cerca de R$ 2 milhões. Grande parte deste montante vem da venda de camisetas e outros produtos, e uma parcela menor, de doações. Como não será mais preciso ir aos Estados Unidos para o tratamento, o pai, Jonas, e a mãe Silcéia Santos de Oliveira, acreditam que sobrará dinheiro para ajudar outras crianças que sofrem da doença.
Como Raíssa precisará, mesmo após o transplante, de cuidados especiais que demandam recursos de que a família não dispõe, a ideia é aproveitar parte do dinheiro da campanha para esse fim, mas o que sobrar deve ser o pontapé inicial para um projeto maior. A família da menina pretende criar uma fundação de apoio a crianças com epidermólise bolhosa, levando informações e fazendo campanhas para ajudar os pacientes e ampliar políticas públicas de tratamento e atendimento.
– Só quem vive o dia a dia dessa doença sabe o quanto é preciso ajuda. Cada centavo que conseguimos vai para ajudar a Raíssa, mas queremos muito que ainda dê para apoiar outras famílias. A gente conhece essa luta e ela não é fácil – diz Jonas.
Saiba mais sobre a campanha
parapoderabracar.com
facebook.com/parapoderabracar