Ninguém ensinou, mas a doméstica Val sabe quem pode entrar na sala, qual é a mesa que os empregados devem usar, quem pode entrar na piscina e qual pote de sorvete é o preferido dos patrões. Há 13 anos cozinhando, limpando, passando e ajudando a criar o filho de Bárbara e Carlos, família paulistana de classe média alta, ela "é de casa", mesmo fora da sua, que deixou no Nordeste.
Lei dos Domésticos deve tornar mais profissional a relação entre patrão e empregado
A história acima é fictícia - pano de fundo do filme brasileiro Que Horas Ela Volta?, que estreou em 27 de agosto em Porto Alegre -, mas comum a boa parte dos 7,2 milhões de trabalhadores domésticos brasileiros, número que posiciona o país no topo do ranking mundial, segundo a Organização Internacional do Trabalho. Aclamado pela crítica e condecorado com pelo menos cinco prêmios em festivais, o longa-metragem dirigido por Anna Muylaert e protagonizado por Regina Casé reproduz costumes sociais que circulam entre a afetividade e a hierarquia, o carinho e a submissão.
Assista ao trailer do filme:
O lugar do trabalhador doméstico na sociedade é mesmo confuso, avalia o doutor em sociologia e professor da Universidade do Vale do Taquari (Univates) Renato de Oliveira. Confuso porque o ambiente caseiro não é propício para uma relação estritamente profissional.
- Quem permanece muito tempo junto à mesma família, principalmente, tende a desenvolver laços afetivos muito fortes, o que encobre uma certa despersonalização do trabalhador - aponta.
"Que Horas Ela Volta?" é cotado para o Oscar 2016
No filme, esses conflitos passam a ser questionados quando chega a São Paulo, do Recife, a filha de Val. Com o dinheiro que a mãe enviava todo o mês, ela concluiu os estudos (quebrando o estereótipo de que filhas de domésticas só poderiam seguir um caminho único) e agora vai prestar vestibular. O senso crítico da garota não deixa passar batido o fato de Val viver em um quartinho apertado dos fundos, enquanto há um luxuoso quarto de hóspedes vazio. Ou a ideia de que sua mãe, em mais de uma década de trabalho, jamais sentou à mesa da sala de jantar, apesar da simpatia e da cordialidade dos patrões, que a classificavam como "da família".
- Em geral, as domésticas incorporam e naturalizam essas microrrelações de poder porque a desigualdade social é seu parâmetro de vida. Não é que não tenham consciência de sua condição subalterna, mas elas passam por cima disso porque, de fato, não têm outra coisa no horizonte - analisa o sociólogo Jefferson Belarmino Freitas, doutorando em sociologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e autor do estudo Desigualdades em Distâncias - Gênero, Classe, Humilhação e Raça no Cotidiano do Emprego Doméstico, defendido no mestrado da Universidade de São Paulo (USP).
Patriarcalismo delimitou lugares
A naturalização seria fruto de uma construção histórica das relações afetivas na sociedade brasileira. Oliveira, por exemplo, considera o trabalho doméstico um sobrevivente do patriarcalismo, período em que os escravos deviam obediência a um só "senhor de terras". Talvez por isso, lugar de patrão e lugar de empregado estão, até hoje, bem delimitados. Não é à toa que, nas plantas dos imóveis, o aposento minúsculo que normalmente fica perto da área de serviço ainda ganhe a referência de "quartinho da empregada".
- A pessoa que é submetida a essa desvalorização social internaliza isso de uma forma tão natural, que não se sente digna de pegar o elevador "social" ou sentar no sofá da sala - afirma a professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) e doutora em Psicologia Social Maria da Graça Marchina Gonçalves.
'Que horas ela volta?' mostra a empregada doméstica como uma segunda mãe
Entretanto, não é apenas por este viés que o serviço doméstico deve ser visto. Um estudo publicado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) em 2013 concluiu que tal serviço é importante para a reprodução social, "pois permite a saída de milhares de mulheres para o mercado de trabalho". Elas, as mulheres, representam 92,6% dos trabalhadores domésticos do Brasil.
De Alegrete, a doméstica Marizete Ferreira Paz, 46 anos, mudou-se para a Capital com 21 para trabalhar na casa dos Cardozo. Morava no serviço, mas cumpria apenas as oito horas diárias, pois à noitinha ia para a escola. Formou uma família e deixou de morar no quartinho. Quando Desirée Bianchessi, filha da patroa, teve seus bebês, em 2000, Marizete foi trabalhar em novo endereço. Assim como Val, do filme, a alegretense passou a ajudar na criação de Bernardo e Frederico, hoje adolescentes.
As duas, quando entrevistadas em diferentes momentos, ressaltam respeito e compreensão.
- Trato eles até hoje como filhos. Essa família me deu oportunidade de crescer, de ser alguém. Nossa relação é de muita compreensão, carinho e cuidado. Quando vejo que um dos guris está pra baixo, já desço correndo com um termômetro - conta Marizete.
- O fundamental é a relação de confiança. Temos uma intimidade respeitosa - confirma Desirée.