Uma lembrança aterradora une as 35 mulheres vestidas de preto, lado a lado, que ilustram a capa da mais recente edição da revista americana New York, divulgada nesta semana: todas alegam terem sido abusadas sexualmente pelo comediante Bill Cosby, ícone da televisão nos Estados Unidos. Repulsivos, os relatos são semelhantes: aproveitando-se da fama, o ator atraía as jovens, muitas delas aspirantes à carreira artística, e oferecia uma bebida "batizada" com medicamentos sedativos. As relações sem consentimento ocorriam enquanto elas estavam desacordadas, numa prática que se estendeu, de acordo com os depoimentos, entre as décadas de 1960 e 1990.
"Fomos violentadas em nosso momento sagrado", diz vítima de Abdelmassih
O assunto que mobiliza a imprensa americana desde o ano passado provoca um questionamento: por que tantas vítimas se calam em vez de denunciar imediatamente criminosos sexuais?
No Brasil, casos parecidos vieram a público nos últimos anos: em 2009, Roger Abdemalssih, o até então superconceituado "doutor vida", passou a ser acusado de estupro por dezenas de ex-pacientes que o procuraram para tratamentos de reprodução assistida em sua clínica de São Paulo. No ano anterior, a nadadora pernambucana Joanna Maranhão, então com 20 anos, revelou que havia sido abusada por um ex-treinador na infância.
Para Denise Falcke, professora da pós-graduação em Psicologia da Unisinos, a demora costuma estar relacionada à humilhação e ao medo da vítima em se expor, tendo de reviver o evento traumático ao recontá-lo.
- Fica uma sensação de vergonha, de culpa, por mais que ela tenha sido vítima de uma situação abusiva e seja relevante a denúncia para preservar outras pessoas - explica a psicóloga.
É comum a fantasia de que a pessoa será capaz de esquecer e superar a violência se tratá-la como um segredo, decisão que pode ter graves impactos ao longo da vida, como depressão e baixa autoestima. Denise destaca a força em potencial de um grupo que resolve somar esforços em busca de punição para o violentador. Em maior número, as vítimas se fortalecem, podendo enfrentar juntas o desgaste da repercussão de um episódio rumoroso. A abordagem precoce do problema, com auxílio de terapia, mostra-se benéfica.
- A vítima consegue dar sentido àquelas vivências, desculpabilizando-se. Falar ajuda no processo de elaboração, ajuda a entender que foi algo pontual, muito sofrido. Ela será capaz de ter relacionamentos saudáveis. Se o assunto não for trabalhado, repercute em outros relacionamentos. Vítimas de abuso infantil, quando iniciam a vida sexual, trazem toda uma conotação de sofrimento a algo que era para ser prazeroso - comenta Denise.
O medo que cala
O temor pelas consequências de um confronto com um oponente tão poderoso, como Cosby e Abdelmassih, também é um fator que dificulta as denúncias, aumentando a sensação de impotência e descrença na aplicação de uma penalidade. Muitas das mulheres violadas por Cosby silenciaram. Outras, por décadas, foram ignoradas, desqualificadas, consideradas oportunistas que desejavam a atenção da mídia e o dinheiro do comediante famoso. "Eu poderia ter dito: 'Fui estuprada e drogada por Bill Cosby'. Mas quem é que teria acreditado em mim? Ninguém, ninguém", lamentou Barbara Bowman, atacada repetidas vezes ao longo de dois anos.
- Os crimes sexuais não têm testemunha e, em muitos casos, não têm prova material. É a palavra da vítima. Ela se sente numa situação muito frágil. Como vai se colocar contra alguém respeitado na sociedade? - questiona Lívia de Souza, assessora jurídica da ONG Themis, que tenta ampliar as condições de acesso das mulheres à justiça. - É difícil, ninguém quer estar no lugar de vítima. "Fui estuprada". É pesado isso - acrescenta.
As mulheres molestadas por Cosby enfrentaram um obstáculo extra: quando os estupros ocorreram, a definição desse tipo de crime ainda não era clara. Costumava estar associada a ataques de estranhos em uma rua escura, e não a um jantar com um homem conhecido ao qual a vítima havia comparecido espontaneamente. Apesar de a abordagem do tema ter evoluído, ainda há muitas situações, segundo Lívia, em que autoridades não reconhecem como estupro as investidas agressivas de namorados ou maridos.
- Os processos normalmente são longos. A moral sexual da mulher é analisada, a roupa é analisada, o horário em que ela estava na rua, se estava sozinha, se estava bêbada. O advogado de defesa do acusado vai falar contra ela. Tem muito juiz que leva o histórico sexual da mulher em conta. Se ela quer levar adiante o processo, a gente fala: te prepara que vai ser difícil - relata a advogada. - Mesmo que ela não consiga a condenação, é um marco na vida dela, um marco na história das mulheres. É importante encerrar isso. Ela fez o que tinha que fazer.
Rompendo o silêncio
Vítimas de crimes sexuais podem adiar denúncias devido à vergonha e ao medo de reviver o trauma
Capa da revista americana New York divulgada nesta semana reúne 35 mulheres que alegam terem sido violentadas pelo comediante Bill Cosby
Larissa Roso
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