Pegada deixada por um dos javalis (Foto: Carlos Macedo / Agência RBS)
Ainda filhotes, javalis têm pelagem mais clara: uma fêmea pode parir de oito a 12 deles por ano (Foto: Carlos Macedo / Agência RBS)
* Zero Hora
Dois veteranos mateiros, sabedores dos nomes de cada árvore, do cheiro das ervas e dos segredos dos animais silvestres, aceitam guiar a equipe de ZH por uma região inóspita de Quaraí atrás de javalis. Missão: fotografar porcos selvagens nos cafundós do pampa, onde se escondem. Condição: não revelar o local, para não atrair caçadores.
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Odacir Confortin, 49 anos, ganhou o apelido de Chulengo - referência ao filhote pernalta de guanaco - pela rapidez com que se move em matos fechados e banhadais. Everaldo Machado Castro, o Cusso, 44 anos, é especialista em trilhas - quanto mais áspera for, mais à vontade ele fica. Ambos moram em Quaraí, na fronteira com a uruguaia Artigas.
Chulengo e Cusso - assim preferem ser tratados - são acompanhados na expedição fotográfica por dois cães. A Pitoca - cruza das raças airedale terrier com veadeiro - é hábil nos movimentos circulares de empacar (amarrar ou distrair) o javali. Nego, um guaipeca típico da fronteira, é farejador incansável. A dupla se completa com suas diferentes aptidões.
A busca para capturar imagens começa pela parte úmida da mata, onde escorre o Rio Ibirapuitã. Chulengo pede silêncio, pois os javalis temem a voz humana. Comunica-se com os cães por assovios. Numa das suas poucas frases, brinca com os repórteres:
- Se ninguém aqui for pata de pomba (pé-frio), veremos os porcos!
De tão habituados ao predador, moradores da fronteira chamam os javalis de porcos - ou chanchos na versão uruguaia. Após duas horas de caminhada, Pitoca e Nego latem avisando que localizaram um deles. É um macho satélite, aquele que gravita em torno da vara depois de ter sido expulso pelo javali dominante. Deve pesar em torno de 90 quilos, os caninos - presas - despontam entre os pelos hirsutos do focinho.
Tática é ir aonde existe a comida
De porte médio, Nego e Pitoca apenas cercam o javali, que parece surpreso, mas não assustado. Chulengo não tem os sabujos de ataque, como o poderoso dogo argentino, que se engalfinham nos porcos selvagens em lutas sanguinárias para os dois lados. Inúmeros cães já morreram em caçadas, destripados por caninos que operam como sabres, em potentes cabeçadas de baixo para cima. A própria Pitoca quase se foi, ano passado, ao ter o ventre rasgado no que os gaúchos definem de "talho de toda lâmina" (ao comprido).
- Tem muito porco bandido, que mata cachorro - diz Chulengo.
Ao notar a presença humana, o macho solitário desempaca dos cães e foge. Nego e Pitoca vão ao encalço, mas ele pula uma vala de três metros e depois atravessa o Ibirapuitã, numa largura de 30 metros, sumindo na mata. Chulengo assovia, quer os cuscos de volta, para que não se cansem.
- O porco corre que se desastra - comenta o guia.
Há um ditado uruguaio que ensina: a perdição do homem é a "plata" (dinheiro); a do chancho é a comida. A lógica para seguir os javalis é ir aonde tem alimento e aguadas. Os mateiros percebem os vestígios de outros animais, além do javali. Um montinho de cocô amarelado indica bugios.
- Cuidado - previne Cusso, lembrando que os primatas, da copa das árvores, usam as fezes como artilharia aérea contra intrusos.
Marcas de pisadas no chão barrento mostram a trilha de capivaras, veados e tatus. Chulengo ralha com os cães, para que não desviem o faro dos javalis. Andar na lama cansa, os pés atolam, entra água barrenta por sobre o cano das botas. Mas o pior viria depois, na segunda etapa da jornada pelos confins de Quaraí. A área é tão ínvia e intransponível que Cusso observa:
- Se chove antes, não se entra lá. Se chove depois, é preciso esperar a água baixar para ir embora.
Após breve descanso, com direito a uma merenda de bolacha com salame, recomeça a perseguição fotográfica. Os guias decidem subir um cerro recoberto de arbustos. Quem vê de longe se deslumbra com a exuberância da natureza. Ao se chegar ao lugar, no entanto, o sobressalto: como penetrar a malha de espinheiros, como a temível unha de gato e outras espécies retráteis, que encravam na pele produzindo o efeito do anzol?
A mata é tão espessa que forma uma teia de ramagens perfurantes. Acostumados que estão, Cusso e Chulengo pouco se arranham, mas as agulhas vegetais ferem os braços e a cabeça dos urbanoides que só se exercitam em parques de Porto Alegre. As roupas ficam em pandarecos. Justo no momento em que os espinhos mais fustigam e enredam, Pitoca e Nego anunciam com latidos: acharam uma vara de javalis.
São seis machos e fêmeas adultos, mais nove filhotes de pelagem clara rajada. Chulengo recomenda cautela. Ele já foi atropelado por javalis, numa vez caiu de ficar de pernas para o ar, na outra precisou se refugiar no alto de uma árvore.
- Não se sabe a brabeza que são. O cachaço (macho dominante) ataca até homem a cavalo - alerta.
Parte dos javalis empaca diante do assédio dos cachorros. Refeitos do breve aturdimento, todos escapam sob os espinheiros e desaparecem. Ficaram os ecos dos grunhidos e as raras imagens captadas pelo repórter fotográfico Carlos Macedo. É o fim da excursão a um dos mais recônditos esconderijos do predador.