Por Fernando Neubarth
Médico e escritor
Parece mais cômodo, sempre, negar o período de perdas, muitas injustificadas, com a pandemia. O descaso para com a vacinação, o reaparecimento de doenças já controladas, como a paralisia infantil, impõe que se encare o risco da doença e da morte com responsabilidade e as cores de sua real amargura. Morrer pode ser a libertação após uma longa e produtiva existência. Mas não há graça nenhuma, e precisamos voltar a pensar nela como patética, grotesca e inaceitável, pelo menos quando ocorre ignorando todas as possibilidades que a ciência e o cuidado permitem. Tema difícil, mas peço emprestado sapatos pretos de verniz para tentar ser mais convincente.
Pedro da Silva Nava nasceu em 5 de junho de 1903. Médico reumatologista, considerado um dos pioneiros da especialidade, foi um dos primeiros presidentes da Sociedade Brasileira de Reumatologia. Mineiro de Juiz de Fora, foi também poeta, caricaturista amador e um dos nossos grandes escritores, tido como um dos maiores memorialistas da língua portuguesa e um artífice no uso estético da palavra. Soube como ninguém recompor sua história numa obra de talento e fôlego. Note-se que Baú de Ossos, Balão Cativo, Chão de Ferro, Beira-Mar, Galo das Trevas, O Círio Perfeito e o inacabado Cera das Almas, colossal conjunto de memórias, foram escritos de 1972 em diante, ao longo de sua última década de vida. Sua morte, naquele domingo, 13 de maio de 1984, interrompeu uma carreira literária intensa, ainda que tardia. Nunca é tarde para ler e descobrir Nava.
Antes do sucesso literário, Pedro Nava era mais conhecido como médico, e amigo de escritores, muitos deles do grupo de Minas Gerais, marcante na literatura brasileira. Dedicou-se à medicina por mais de 50 anos, clinicando em Juiz de Fora, Belo Horizonte, Monte Aprazível e no Rio de Janeiro, onde foi também professor universitário. Autor de muitos artigos, ensaios e livros, vale lembrar sua poesia, em especial aquela antológica de O Defunto, que encantou, entre muitos, a Pablo Neruda.
O poeta chileno, Prêmio Nobel de Literatura, desconcertou a todos quando esteve no Rio de Janeiro e, numa entrevista a Clarice Lispector; em 19 de abril de 1969, ao ser indagado se estava a par da poesia brasileira e qual o autor de sua preferência, Neruda respondeu:
– Admiro Drummond, Vinícius, Jorge de Lima. Não conheço os mais jovens e só chego a Paulo Mendes Campos e Geir Campos. O poema que mais me agrada é O Defunto, de Pedro Nava. Sempre o leio em voz alta aos meus amigos, em todos os lugares.
Àquela época, poucos conheciam o Nava escritor.
O Defunto é uma obra de raro requinte e amarga ironia. Dedicado a Afonso Arinos de Melo Franco, fora escrito muitos anos antes, em 1938, quando Pedro Nava tinha 35 anos.
Quando morto estiver meu corpo/ evitem os inúteis disfarces,/ os disfarces com que os vivos,/ só por piedade consigo,/ procuram apagar no Morto/ o grande castigo da Morte.
Não quero caixão de verniz/ ou os ramalhetes distintos,/ os superfinos candelabros/ e as discretas decorações.
Eu quero a morte com mau gosto!
Deem-me coroas de pano./ Deem-me as flores de roxo pano,/ angustiosas flores de pano,/ enormes coroas maciças, / como enormes salva-vidas, / com fitas negras pendentes.
E descubram bem minha cara:/ que a vejam bem os amigos./ Que a não esqueçam os amigos/ que ela perturbe os amigos/ e que lance nos seus espíritos/ a incerteza, o pavor, o pasmo.../ E a cada um leve bem nítida/ a ideia da própria morte.
Descubram bem esta cara!
Descubram bem estas mãos:/ Não se esqueçam destas mãos!/ – Meus amigos! Olhem as mãos!/ Onde andaram, que fizeram,/ em que sexos se demoraram/ seus lábios quirodáctilos?/ Foram nelas esboçados/ todos os gestos malditos:/ até furtos fracassados/ e interrompidos assassinatos...
– Meus amigos! Olhem as mãos/ que mentiram às vossas mãos.../ Não se esqueçam:/ elas fugiram/ da suprema purificação/ dos possíveis suicídios.../ – Meus amigos! Olhem as mãos,/ as minhas e as vossas mãos! Descubram bem minhas mãos!
Descubram todo o meu corpo./ Exibam todo o meu corpo/ e até mesmo do meu corpo/ as partes excomungadas,/ as partes sujas sem perdão,/ que eu esmagava nos sábados/ e aos domingos renasciam! – Meus amigos! Olhem as partes.../ Fujam das partes.../ Das punitivas, malditas partes.../ – Meus amigos! Arranquem as suas.../ Esmaguem as suas.../ Amputem as suas...
Eu quero a morte nua, crua, / terrífica e habitual, / com o seu velório habitual.
Ah, o seu velório habitual.../ Não me envolvam num lençol:/ a franciscana humildade,/ bem sabeis que não se casa/ com meu amor pela Carne/ com meu apego ao Mundo.
Eu quero ir de casimira:/ calça listrada, plastron.../ com os mais altos colarinhos,/ com jaquetão com debrum...
Deem-me um terno de ministro/ ou roupa nova de noivo.../ E assim, solene e sinistro,/ quero ser um tal defunto,/ um morto tão acabado,/ tão aflitivo e pungente,/ que a sua lembrança envenene/ o que restar aos meus amigos/ de vida sem minha vida.
– Meus amigos! Lembrem de mim./ Se não de mim, deste morto,/ deste pobre terrível morto,/ que vai se deitar para sempre,/ calçando sapatos novos!/ Que se vai como se vão/ os penetras escorraçados,/ as prostitutas recusadas,/ os amantes despedidos,/ como os que saem enxotados/ e tornariam sem brio/ a qualquer gesto de chamada./ Meus amigos! Tenham pena,/ senão do morto, ao menos/ dos dois sapatos do morto!/ Dos seus incríveis, patéticos/ sapatos pretos de verniz./ Olhem bem estes sapatos,/ e olhai os vossos também...
Com profunda admiração, nos resta a reflexão e o silêncio.