Li e ouvi análises diferentes sobre os altos índices de abstenção nas eleições municipais em algumas das maiores cidades brasileiras — 31,5% em Porto Alegre. Foi a partir dessas reflexões que formei uma convicção: “não votar” é democrático, ético, justificável e legítimo. Há uma multa de valor simbólico. Quem escolhe não comparecer às urnas, opta por pagá-la. De fato, o voto não é obrigatório no Brasil, porque as consequências já são pífias e, a meu ver, deveriam inexistir. Isso sim é liberdade, muitas vezes confundida com vale tudo. A abstenção não interfere na vontade de terceiros. É uma decisão individual e soberana. A obrigação de votar, sim, é uma violência. Principalmente contra a democracia, porque quem sai de casa para votar contrariado, acaba votando com o fígado, e não com o cérebro. Ou vende seu voto em troca de qualquer coisa, mesmo que seja uma promessa rasa e inexequível.
Os elevados índices de não comparecimento às urnas são um sintoma do desencanto com a abissal distância entre as promessas e as entregas do sistema de poder vigente
A abstenção tem múltiplas causas, mas é um indicador importante, com dupla face. De um lado, as eleições se transformaram em algo corriqueiro. Isso é bom. A qualidade e a efetividade da nossa Justiça Eleitoral contribuíram muito para essa evolução.
Lembro quando, logo depois da redemocratização, eleições eram episódios quase mágicos. A cobertura jornalística era pautada pela emoção e pelo tom poético. Eu mesmo cometi textos impregnados de uma pieguice que, na época, parecia fazer sentido. E talvez fizesse. O voto, hoje sei, deve ser, acima de tudo, racional.
Por outro lado, os elevados índices de não comparecimento às urnas são um sintoma do desencanto com a abissal distância entre as promessas e as entregas do sistema de poder vigente. É importante que esse sinal apareça.
A democracia, não é de hoje, está desafiada. Os partidos políticos perderam relevância na sua missão original de representar anseios e de apresentar propostas. A abstenção, de certa forma, é a febre que alerta para a existência de uma infecção. Ou tomamos um antitérmico para mascarar o sintoma, ou vamos investigar as causas da patologia. Ou seguimos em frente, repetindo para nós mesmos: “Vai passar, vai passar”. Só que não vai.