Uma vez, durante uma conversa com o Moacyr Scliar, ele me disse: “Eu li Minha Luta”. Esse é o título de um livro escrito por Adolf Hitler. É considerado a bíblia do nazismo, ideologia responsável por uma guerra que matou milhões de inocentes, entre eles ciganos, gays, judeus, comunistas, russos, alemães, pessoas com deficiência, americanos e brasileiros, que combateram bravamente a ameaça totalitária na Europa.
Scliar faz parte de uma seleta lista mundial de grandes escritores judeus. Sua obra transformou o Bom Fim, bairro onde morava a imensa maioria dos judeus de Porto Alegre, em uma referência literária universal.
Na época, achei estranha a convicção do Scliar ao defender a leitura do panfleto hitlerista. Hoje, entendo. Porque também li Minha Luta, assim que ele caiu em domínio público, em 2016, e voltou a ser editado no Brasil. Agora, tramita em Porto Alegre um projeto que prevê a proibição do comércio, da publicação, da distribuição, da difusão e da circulação do seu conteúdo integral ou parcial. Não tenho a menor dúvida sobre as boas intenções da proponente. Mas os efeitos dessa vedação seriam inócuos ou contraproducentes. Primeiro, porque, em tempos de internet, qualquer um tem acesso a qualquer conteúdo. Segundo, porque a proibição aguçaria a curiosidade. Vale ressaltar: meu avô, um judeu alemão, foi prisioneiro em um campo de concentração nazista. Foi dos últimos a conseguir sair de lá.
Fugiu para o Brasil, onde foi acolhido como um cidadão pleno até o último dia da sua vida. É justamente por isso que defendo: Minha Luta deveria ser lido na escola e, com professores capacitados, virar tema de debate profundo sobre os limites da estupidez humana, compreendendo o momento em que foi escrito, suas implicações e as lições que devemos aprender com ele. Da mesma forma, não consigo compreender um anticomunista que não tenha lido O Capital. Ou um comunista que não conheça os teóricos do liberalismo. A preguiça intelectual logo se transforma em arrogância.
O ideal é que Minha Luta jamais tivesse sido escrito. Mas empurrá-lo para baixo do tapete não apaga a sua importância histórica e tudo o que devemos compreender hoje sobre discursos populistas – de esquerda e de direita – que encantam, seduzem e emburrecem povos e pessoas. Muitos alemães, netos e bisnetos dos nazistas de então, perguntam-se até hoje: “Como foi possível tamanha barbárie?”. Se esquecermos a pergunta, perderemos a resposta.