Ele é um cientista polêmico. Foi o primeiro a usar técnicas de diagnóstico por imagem para escanear cérebros de criminosos e tentar compreender seu funcionamento.
O britânico Adrian Raine não altera o tom de voz para rebater as acusações que o perseguem: suas pesquisas poderiam remeter a um passado sombrio, quando a biologia foi usada tentar justificar o discurso de superioridade racial. Entre os seus livros mais famosos, A Anatomia da Violência foi lançado no Brasil, país que Raine conhece bem.
Conversamos por 50 minutos em seu escritório na Rua Walnut, Filadélfia.
A violência tem cura?
O tratamento da violência sempre foi um grande problema. Sempre houve muita resistência à mudança. Olhando para a História, há várias razões. A violência é um comportamento complexo. Não é como uma doença específica que tem um remédio único. Há muitas peças que precisam se juntar para explicar por que as pessoas são violentas. Como em um quebra-cabeça.
Por onde começar?
Os cientistas, por muitas décadas, têm se focado no aspecto social. Isso é importante. Vizinhança, violência contras as crianças, pobreza, educação ruim. Isso tudo precisa ser corrigido, é óbvio.
Esses aspectos são suficientes para fazer alguém violento?
Não. É aí que eu quero chegar. É mais complicado do que isso. Fatores biológicos têm um papel no comportamento. Essa é a parte que vem sendo ignorada. O comportamento violento é um sintoma de que algo está errado no indivíduo. Está faltando a perspectiva biológica. Falhamos porque nunca admitimos que fatores biológicos têm um papel no crime. Até que encontremos a causa, não conseguiremos fazer um tratamento funcionar. Não se trata de abrir mão dos enfoques atuais, como desvantagem social, mas de enfrentar também as desvantagens biológicas.
Desvantagens biológicas? Essa expressão pode soar estranha para algumas pessoas...
Sim, pode. É interessante pensar por que nos sentimos desconfortáveis ao falar de biologia ao mesmo tempo em que falamos de violência. Uma das grandes questões sobre pesquisa biológica é para onde ela vai nos levar. Falando do espectro político, nem a esquerda nem a direita gostam. A esquerda porque os holofotes se desviariam dos problemas sociais. Há o temor de que, usando a desculpa biológica, se pare de investir no combate à pobreza e à desigualdade. A direita também não gosta porque a pesquisa biológica poderia explicar tecnicamente porque alguém se tornou criminoso. Em um tribunal, se poderia alegar esses motivos para justificar punições menos rígidas. E a direita tem um enfoque mais duro.
Se é assim, quem está com o senhor?
Acho que sou a escolha do meio. Mas eu consigo entender os dois lados. Eu tive a minha garganta cortada na Turquia e, na hora, fiquei furioso, só pensava em punição. Se encontrarmos a toda hora desculpas pelo que alguém fez, então ninguém será responsável por nada. Sempre há uma ou mais razões para fazer as coisas. Vamos achar os motivos. Achar os motivos não significa que perdoaremos os comportamentos.
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Tudo isso remete a um passado sombrio. Logo vêm à cabeça as pesquisas nazistas e a tentativa de usar a biologia humana para justificar a discriminação.
A pesquisa biológica foi mal utilizada no passado. Não queremos que nenhuma pesquisa seja mal utilizada. Devemos ter muito cuidado. Mas também devemos ter muito cuidado com o uso da pesquisa social, porque ela pode nos levar a políticas públicas desastrosas. A pesquisa social, por décadas, tem levado a mensagem de que, nos Estados Unidos, os negros cometem mais crimes do que os brancos. É claro, o que eles fazem é documentar os fatos. Mas isso levou à estigmatização das minorias.
Que outros fatores pesam?
Alimentação deficiente é outro fator que age negativamente sobre a mãe e, consequentemente, sobre o bebê. São questões biológicas que interferem negativamente sobre o cérebro, impedindo o seu desenvolvimento. Outro dado: não há uma quantidade de ingestão de álcool segura durante a gravidez. Essa é a conclusão. Não estou culpando as mulheres como causadoras da criminalidade, mas quantas doses por semana ingeridas na gestação seriam necessárias para aumentar o nível de agressividade em uma criança em 30%? Vinte? Quinze? Dez? Cinco? As pesquisas chegaram a uma dose por semana. Quem simplesmente concorda com a postura de não falar sobre isso, está fazendo o que fazem os avestruzes diante do perigo.
A violência tem papel na evolução? Esse papel mudou?
As mulheres são muito interessadas em criminologia. Nós temos um programa de mestrado aqui com 22 alunos e apenas um é homem. Os homens podem ser mais violentos, mas, em termos de atração pela violência e interesse pelo assunto, as mulheres superam os homens. Do ponto de vista da evolução, é mais importante que a mãe sobreviva, porque é ela quem carrega a criança. Então as mulheres, em geral, têm que ser cuidadosas. Faz sentido que as mulheres prestem muita atenção em quem é violento, quem é criminoso e quem pode machucar.
Uma outra perspectiva sobre crime e evolução vem de pesquisas com tribos primitivas no Brasil. Geralmente, os homens que matavam mais inimigos em batalhas tinham duas ou três vezes mais esposas que os outros. Eles tinham uma média de quatro filhos, enquanto os demais tinham um. Por que essas mulheres se sentiam atraídas? Em algumas culturas, violência traz poder e sensação de que aquele homem poderia protegê-las de um estuprador ou de outros tipos de agressões. Eu não estou dizendo que isso é certo, estou apenas analisando.
O senhor detectou diferenças entre cérebros de criminosos e de não criminosos. Essas diferenças são causas ou consequências da violência?
Essa é uma grande pergunta. Encontramos uma redução de 18% no córtex pré-frontal dos homens que são psicopatas antissociais. Sua pergunta é o que causa isso. Poderiam ser os genes ou o ambiente. Uma batida na cabeça poderia ser a causa. É uma grande pergunta que ainda não foi respondida. Nós sabemos que há um componente hereditário para o comportamento antissocial. Sabemos também que há uma influência genética no volume do córtex pré-frontal. Temos de ser agnósticos. Não podemos dizer que é genético, porque também pode ser o ambiente.
Outra descoberta é que existe também uma diminuição das amígdalas cerebrais, que estão ligadas à geração de emoções. Um psicopata não sente culpa, medo, não se importa com os outros. Em uma outra parte do cérebro, estriado (striatum), encontramos o aumento em psicopatas. Essa região está envolvida na busca por recompensas. A hipótese é que essa parte do cérebro esteja empurrando na busca de mais recompensa. Não temos ainda 100% de certeza.
Qual seria uma recompensa para um psicopata?
Dinheiro. Sexo. Poder. O mesmo que é para nós. Mas temos que pensar que os psicopatas são biologicamente mais motivados para isso. Pode ser comparar a um vício. Você precisa dessa recompensa agora e não pode esperar, então você faz coisas ilegais para chegar lá. É, por enquanto, apenas uma teoria.
O senhor está relativizando o conceito de culpa?
Sim. Eu trabalhei quatro anos com condenados dentro de prisões na Inglaterra. Eu fazia uma entrevista padrão para entender a pessoa. Uma das perguntas sempre era "o que você queria ser quando fosse adulto?". Adivinhe. Nenhum deles disse que queria ser criminoso. Garotos querem ser jogadores de futebol como Pelé. Acredito que há fatores que vão além do controle do indivíduo. Eles moldam comportamentos, inclusive o comportamento criminoso.
Se fosse possível escanear o cérebro do seu filho e descobrir preferências dele que não lhe agradam, como votar em Trump ou Sanders, ou mesmo mudar de religião, seria possível usar a mesma lógica de tratamento que o senhor pesquisa para a criminalidade?
Entendo. O que aconteceria se no futuro pudéssemos escanear os cérebros de todas as crianças de 11 anos no Brasil? No futuro, com mais conhecimento, juntando o conhecimento social e o conhecimento biológico e como eles interagem e se combinam, poderíamos intervir nessa criança com tratamentos sociais, psicológicos e biológicos. A tal ponto que eu poderia dizer que seu filho de 11 anos tem 70% de chance de ser um criminoso violento quando crescer. Essa é a má notícia. A boa é que nós teremos desenvolvidos novos programas de prevenção que enfrentam os problemas sociais, biológicos e psicológicos. Digamos que não seja um tratamento perfeito, que a taxa de sucesso seja 70%. A questão será, ok, nós teremos que separar seu filho de você por algum tempo, porque o tratamento exige internação. Você é parte do problema. Tal pai, tal filho, transmissão genética. O que você faz? Você diz sim, meu filho precisa de ajuda, vai ter de ser separado de mim, isso tem um custo. Ou não, você não se importa.
Alguma pista do porque os homens são mais violentos que as mulheres?
Sim, biologicamente sim. Um dos meus alunos fez uma pesquisa. Vai parecer estranho, mas os homens têm batimentos cardíacos mais lentos que as mulheres. Os homens têm mais sangue frio (risos). Esse é apenas um fator. Mas entre os homens, aqueles com menor batimento cardíaco têm mais tendência ao crime. Vou tentar explicar. Medir os batimentos cardíacos é uma situação de estresse, mesmo para meninos. Acontece em um laboratório ou em um hospital, mesmo em um consultório. As pessoas que não têm medo disso mantem seus batimentos normais. Para cometer um crime, você não pode ter medo. Não me refiro ao crime passional, mas a aquele planejado, premeditado. Não é uma relação direta de causa e consequência, apenas um dos fatores observados em pesquisa. Há vários outros fatores, como a testosterona. Os homens têm mais massa muscular. Talvez isso tenha servido, no passado, para moldar um comportamento cultural e não necessariamente biológico.
Você tem razão ao dizer o mau uso da pesquisa biológica pode ser perigoso, mas não usar a pesquisa biológica pode ser ainda mais perigoso. Se impedirmos esse tipo de pesquisa, mancharemos nossas mãos com sangue das vítimas inocentes que poderíamos ter salvo. Os cientistas devem fazer pesquisas responsáveis, sem preconceitos em qualquer direção. Devemos deixar as pessoas decidirem.