Maurício Santana Dias é o responsável pela tradução para o português de um dos maiores fenômenos literários dos últimos tempos, aTetralogia Napolitana, da escritora italiana Elena Ferrante. Só o primeiro volume, A Amiga Genial, vendeu mais de 2 milhões de exemplares no mundo.
Em conversa com o Informe Especial, o professor da USP, pai de duas meninas, uma de nove e outra de sete, fala sobre a experiência de traduzir um texto tão identificado com o universo feminino. Discute sobre a verdadeira identidade de Elena Ferrante e as teorias de que o pseudônimo que assina a obra encubra uma escrita a quatro mãos.
A tetralogia napolitana narra, grosso modo, a história de amizade entre duas mulheres. Obviamente, traz muitas nuances do universo feminino, sentimentos difíceis de ser compreendidos sob uma ótica masculina. Como foi a experiência de traduzir a obra?
É um desafio a mais a ideia de se colocar no lugar do outro, diferente do seu. Acho que o fato de eu ler muita literatura de homem, de mulher, e estar sempre atento influencia. E também o fato de eu viver em um ambiente bastante feminino – tenho uma mulher e duas filhinhas. Isso tudo favorece o contato com essa outra realidade que não é própria do seu sexo. De todo modo, acho que é uma função o própria do tradutor se impregnar do texto que está traduzindo.
Como foi o convite para traduzir Elena Ferrante?
Eu já vinha falando da Ferrante desde o início dos anos 2000, quando li o primeiro romance dela, muitos anos antes do lançamento da tetralogia. Na época não foi muito além disso. Até que, em 2014, me ligaram da editora perguntando se eu conhecia e se eu gostaria de fazer. E eu respondi: "Olha, é uma autora de que eu gosto muito, mas ainda não conheço a tetralogia". Estava começando a sair na Itália. Pedi duas semanas para responder. Li o primeiro volume, A Amiga Genial, gostei bastante e topei na hora fazer. A princípio eu não sabia se conseguiria dar conta dos quatro volumes, porque são 1,7 mil páginas e eu tenho muitos compromissos na USP (onde leciona no departamento de Letras). Eu sabia que eles tinham prazo e queriam que os livros fossem traduzidos com certa velocidade.
Quanto tempo teve para traduzir A Amiga Genial?
O primeiro volume foi o mais rápido, levei de três a quatro meses. Traduzi todos os quatro em um ano e meio.
Como era a rotina?
Geralmente traduzo à noite. As meninas vão dormir (tenho uma de três e outra de sete), e aí emendo e às vezes vou até bem tarde. Durante o dia fico dedicado aos meus compromisso na universidade, o horário que eu tenho para fazer é à noite.
Você costuma ter contato com os autores que traduz? Sabemos que Elena Ferrante é um pseudônimo, mas alguma troca de mensagens, talvez?
Não tive. A editora me falou que, se eu tivesse alguma questão de tradução, eu poderia entrar em contato com eles. Mas, por uma questão de princípio, eu prefiro não incomodar os autores. Eu lido com a autoria, que já está imposta no texto. Mas não lido com o sujeito autor. Até porque a maioria dos autores que eu traduzi já não estão vivos. Também nunca topei com nada que fosse tão desconcertante a ponto de eu não conseguir resolver no embate com o próprio texto.
Qual o segredo do sucesso da tetralogia?
Eu acho que ela tem várias qualidades. Primeiro, uma escrita muito dinâmica, muito rápida. Ela consegue encadear as ações com uma habilidade incrível. Ao mesmo tempo, faz um contraponto entre o inconsciente dos personagens e o universo da vida pública. Traça um painel da vida italiana dos últimos 50 anos que é incrível: o feminismo, as mudanças políticas, a revolução cultural. Uma série de problemas que dizem respeito à experiência do Ocidente. E, ao mesmo tempo, à grande história cultural da Itália.
Os leitores acabam de certo modo se identificando com as personagens, ora com a Lila, ora com a Lenu. Isso também acontece com o tradutor? Quem tu prefere?
Acho que é uma espécie de oscilação permanente, porque o próprio texto te faz se aproximar ora de uma, ora de outra. Outra sacada interessante da escritora, que cria uma espécie de gangorra com as duas personagens, ambivalentes. Era uma espécie de movimento pendular. Mas, como tradutor, também tinha que me distanciar e ter uma abordagem mais técnica, diferente da do leitor.
Existe uma teoria de que o livro foi escrito a quatro mãos. De que um autor seria mais a Lenu e o outro, a Lila. O que o seu olhar técnico diz?
Acho bem provável. Tendo conhecimento das últimas notícias, tudo indica que, de fato, a autora principal da Elena Ferrante é a Anita Raja, que é uma tradutora do alemão. Ela é casada com um escritor muito premiado, o Domenico Starnone, e eu tenho a suspeita de que eles meio que escrevem em conjunto. Talvez esse nome encubra uma escrita a quatro mãos. Eu acabei de traduzir romances dele que têm um tipo de escrita muito próximo. Os diálogos, o ritmo narrativo, isso meio que consolidou a minha hipótese de que ou os dois escrevem a quatro mãos ou têm um intercâmbio tão forte que isso acaba contaminando o texto.
O livro original tem muita vida, muito em decorrência da língua italiana, carregada de emoção. A versão em inglês é um pouco mais fria. Tu acha que isso é uma barreira da própria língua ou depende do tradutor escolhido?
O fato de ser uma língua neolatina, mais íntima da nossa cultura, até pela nossa forte colonização italiana, sobretudo no Sul, pode criar alguns vínculos afetivos que nos colocam numa sintonia fina com aquele texto. Mas acho que também depende bastante do tradutor perceber todos os tons, porque é muito rico de carga emocional, afetiva, da memória. É um trabalho que requer essa sintonia fina que o tradutor tem que perceber sempre.
Qual o teu livro preferido de Elena Ferrante?
Dias de Abandono foi o primeiro que eu li e eu gosto bastante dele. Até foi publicado em português. Naquele momento eu estava traduzindo a tetralogia e até sugeri uma outra tradutora para o trabalho (Francesca Cricelli). Acho esse um grande romance, muito interessante. Acho que a tetralogia tem um valor que é justamente essa visão do contexto cultural da Itália. Dias de Abandono é uma questão muito pontual, que é a história de uma separação e a dor da perda sentida por essa mulher que é abandonada pelo marido por uma mulher mais jovem. A trama se circunscreve a essa cena privada afetiva. Não tem a dimensão pública que a tetralogia tem. Um dos grandes trunfos da tetralogia é conjugar a experiência mais íntima e privada com essa outra experiência, a da vida pública. No conjunto, a tetralogia é a grande obra da Ferrante. Embora, se comparar individualmente Dias de Abandono com a A Amiga Genial (primeiro volume da tetralogia), aí tenho minhas dúvidas.
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Traduzir uma obra é uma experiência totalmente pessoal. Tu te sente um pouco coautor do livro ou no momento em que está traduzindo tenta abrir mão dessa ideia de autoria?
De algum modo, o tradutor está sempre reescrevendo a obra. Que se chame isso de coautoria ou reescrita. Porque, de fato, ele faz a obra acontecer em um contexto e uma língua diferente. Se o tradutor não tiver atenção ao tom e ao ritmo da prosa, nuances e detalhes, não funciona. Ele pode até conhecer muito bem a língua, mas não basta. A tradução, principalmente a literária, é sempre uma reescrita.
Qual foi o ponto mais complicado na tradução da tetralogia napolitana?
Tem momentos em que a tradução requer mais do tradutor. Naqueles momentos em que parece que há um extravasamento de fluxo de consciência, embora não chegue a entrar em um monólogo interior, como Virginia Woolf. Há momentos em que a autora entra tanto dentro dos movimentos psíquicos dos personagens, sobretudo da Lenu e, às vezes, da Lila, que isso exigiu mais. Captar o ritmo e o tom exato. É um dos grandes lances do livro, passa muito pelo ouvido. Sem que o tradutor consiga pegar essa pulsação do texto, a tradução não será boa, mesmo que seja tecnicamente correta.
Como tu te tornou um tradutor de italiano?
Eu tenho formação em Letras na área de português-italiano pela UFRJ, a Federal do Rio de Janeiro. Quando eu estava ainda terminando a graduação, comecei a fazer minhas primeiras traduções. Já faz mais de 20 anos que traduzo profissionalmente. Cada vez mais aparecem propostas e eu também faço minhas sugestões para as editoras. No caso da tetralogia, recebi o convite. Várias outras vezes são projetos meus.
Como surgiu o gosto pelo italiano? Tem família de origem italiana?
Nenhum parentesco. Sou um dos poucos da áreas de italianística que não tem sobrenome italiano. Foi tudo via estudo. Primeiro aqui e depois na Itália. A paixão toda passa pela minha formação na área de literatura.