Estados Unidos e Brasil. Duas sociedades distintas e distantes se debatem atualmente com a mesma questão: o voto obrigatório. Um país que celebra seus pilares é mais refratário a mudanças. Os americanos adoram estabilidade. Mais do que democracia. O silêncio em relação à China e à Arábia Saudita é apenas um de tantos exemplos. Por isso, mudar uma regra do sistema eleitoral é, para eles, um processo lento e quase sempre apenas retórico. Foi uma surpresa conversar com dois americanos separados por 60 anos de idade e ouvir deles posições tão convergentes.
No final de outubro, participei de um evento na Universidade de Wharton, Pensilvânia. O seminário sobre Nation Brand (marcas nacionais) foi um amplo debate a respeito de como os países podem empacotar e vender melhor seus atributos positivos. Um dos palestrantes era o professor Philip Kotler, pioneiro do marketing. Phil, como é chamado por seus pares acadêmicos, já havia abordado sistemas eleitorais. Mas fui ouvi-lo pessoalmente depois do painel de eventos esportivos e marcas nacionais, no qual falei, representando o Grupo RBS, sobre Copa do Mundo, Olimpíada e Paraolimpíada.
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Quando fiz a pergunta, Kotler reagiu instantaneamente, com vigor e convicção.
– Não tenho a menor dúvida de que o voto deve ser obrigatório – disparou o professor da Universidade de Kellogg.
Eu quis saber por quê.
– Porque assim as minorias radicais mais organizados não vão vencer.
Existe Partido Verde nos Estados Unidos. E também o Partido Libertário. E também o Partido da Constituição, além da possibilidade de candidatos independentes concorrerem. Mas toda a tradição e a legislação afunilam o processo em um oligopólio político formado por Republicanos e Democratas.
Sam Collins é estudante em Wharton. Tem 22 anos e também acredita que o voto deveria ser compulsório nos Estados Unidos. Motivo:
– As pessoas seriam obrigadas e escolher e aí cresceria a chance de uma terceira força aparecer.
A busca pelo equilíbrio entre maiorias e minorias inspirou o pesquisador da Microsoft Glen Weyl, 31 anos, a criar uma fórmula polêmica e disruptiva: o Quadratic Vote, ou Voto Quadrático. Weyl, que é PhD por Princeton e foi professor na Universidade de Chicago, critica a ditadura das maiorias, o que, para ele, muitas vezes atropela direitos legítimos das minorias.
Sua fórmula para corrigir a distorção é baseada na possibilidade de compra de um ou mais votos. O primeiro custaria uma unidade de valor, o segundo 4, o terceiro 16, e assim por diante. Todo o dinheiro arrecadado seria destinado a um fundo e depois dividido igualmente entre todos os participantes da votação. Formulei a Weyl duas perguntas:
1) De que forma o voto voluntário ou obrigatório está relacionado ao resultado justo de uma eleição?
O principal benefício do voto voluntário é que ele permite a expressão da intensidade da preferência. No voto compulsório, todos devem se manifestar, mesmo que não se importem com a eleição. A melhor solução é implementar um sistema que permita a expressão da intensidade da preferência, mas torne o voto obrigatório e secreto. Isso é o que eu propus na minha pesquisa.
2) A democracia representativa está condenada à morte?
Assim como todas as instituições, a democracia representativa precisa crescer e mudar para prosperar. Acredito que a estrutura básica da democracia representativa, como a conhecemos hoje, perdeu fôlego. Mas ela pode ser revitalizada por reformas institucionais corretas, como o voto quadrático. Precisamos de sistemas que estejam alinhados com as pressões sociais e as mudanças da sociedade. Precisamos de progresso contínuo.
Enquanto isso, no Brasil, o debate também é inspirado na intenção da mudança, mas na direção oposta: tornar o voto facultativo. Antônio Augusto Mayer dos Santos é advogado especialista em direito eleitoral. Para ele, o facultatismo seria uma forma de qualificar e aperfeiçoar o nosso sistema político. Mas faz uma ressalva:
– Com o grau de corrupção dos políticos e, por outro lado, com eleitores espontaneamente vendendo votos, não temos atualmente as mínimas condições de avançar nessa direção.
Muita ênfase no processo geralmente conduz ao lugar errado. Não há regra que resista ao desleixo ético e à impostura individual. Por isso, discutir sobre o voto obrigatório pode ser estéril se não houver ao mesmo tempo a convicção de que a ferramenta é apenas a extensão do braço de quem a usa.
O recente episódio da votação do impeachment na Câmara revelou ao país a assustadora fotografia de um parlamento desqualificado e formado por uma miríade de partidos, na maioria das vezes sem qualquer diferença ideológica significativa entre eles. A baixa qualidade da representação é também resultado de uma massa obrigada a votar sem vontade e sem uma base de consciência política. Por outro lado, o sistema facultativo, a exemplo do que acontece nos Estados Unidos, induz a uma concentração gigantesca de forças e à supervalorização dos votos dos grupos mais organizados e economicamente mais relevantes.
Como se vê, a questão vai além da forma. Sistemas diferentes funcionam em culturas diferentes. E talvez, depois de algum tempo, a mudança favoreça a evolução. Mas não há sistema que opere efetivamente se não houver uma base sólida de educação, de ética e de instituições livres, independentes e eficientes. Isso falta ao Brasil. E, a julgar pela involução do debate político nos EUA, já está começando a faltar por lá também.