Em cartaz a partir desta quinta-feira (4) na Netflix, A Sociedade da Neve (La Sociedad de la Nieve,2023) é o terceiro filme de ficção sobre uma das mais dramáticas e famosas histórias de sobrevivência: a dos passageiros de um avião uruguaio que caiu na Cordilheira dos Andes durante um voo para o Chile, em 13 de outubro de 1972. Para se manterem vivos, eles precisaram se alimentar dos mortos. Representante da Espanha na disputa por uma indicação ao Oscar internacional, o título dirigido por J.A. Bayona também está entre os semifinalistas de outras três categorias: maquiagem e cabelos, música original (composta por Michael Giacchino, oscarizado por Up: Altas Aventuras) e efeitos visuais. A Academia de Hollywood anuncia em 23 de janeiro os concorrentes da premiação marcada para 10 de março. A obra compete ainda no Globo de Ouro de longas em língua estrangeira, que terá seu vencedor revelado neste domingo (7), e no Critics Choice, marcado para o dia 14.
Para quem desconhece a história, fica o alerta de que o texto poderá ter spoilers.
Tema de vários documentários, livros e reportagens, o episódio de heroísmo e canibalismo já havia sido ficcionalizado em Os Sobreviventes dos Andes (1976), do mexicano René Cardona, e em Vivos (1993), produção hollywoodiana assinada por Frank Marshall e estrelada por Ethan Hawke, Josh Hamilton e Vincent Spano. A nova versão cumpre uma série de requisitos nem sempre alcançados pela anteriores:
1) é falada em espanhol;
2) foi filmada em locações que incluem a montanha nevada onde ocorreu o acidente aéreo;
3) teve a anuência de todos os resgatados e os parentes das vítimas, que concederam mais de cem horas de depoimentos, de modo que os personagens aparecem com seus nomes verdadeiros e proferem diálogos fidedignos;
4) não foca apenas nos 16 que resistiram, mas também dá rosto e voz aos 29 que morreram (sem os quais os primeiros não exisitiriam);
5) e consegue equilibrar bem o cinema catástrofe com o debate sobre imperativos de sobrevivência e interdições morais e religiosas a que o grupo foi forçosamente submetido desde os primeiros dias do calvário gelado — foram mais de dois meses até serem salvos, convivendo com o isolamento, a falta de suprimentos, feridas graves e temperaturas baixíssimas durante o dia e insuportáveis à noite.
A Sociedade da Neve é baseado no livro homônimo escrito pelo jornalista Pablo Vierci, colega de escola e vizinho de muitos dos jogadores de um time amador de rúgbi, o Old Christians, que embarcaram com amigos e familiares no fatídico voo 571 da Força Aérea Uruguaia, fretado para levá-los a um amistoso em Santiago do Chile. Revelado pelo terror O Orfanato (2007), o diretor barcelonês J.A. Bayona comprou os direitos de adaptação da obra enquanto filmava outra trama real de desastre e superação: O Impossível (2012), reconstituição da saga de uma família em férias separada durante o devastador tsunami que atingiu a Tailândia em 26 de dezembro de 2004.
Para quem está familiarizado com o caso ocorrido nos Andes (aos que não estão, vale reforçar o aviso sobre spoilers), uma surpresa será a escolha do narrador do filme, que pontua A Sociedade da Neve com lembranças, descrições e monólogos interiores, como este da abertura: "Em 13 de outubro de 1972, um avião uruguaio se chocou com a Cordilheira dos Andes. A bordo, éramos 40 passageiros e cinco tripulantes. Alguns dizem que foi uma tragédia. Outros chamam de milagre. O que aconteceu na montanha? O que acontece quando o mundo te abandona? Quando você não tem roupa e está congelando? Quando você não tem comida e está morrendo? A resposta está na montanha. Tem que voltar ao passado, sabendo que o passado é o que mais muda".
Essa última frase alude à traição da memória de cada um, ou à existência de narrativas conflitantes sobre um mesmo fato, ou ainda à transformação, com o passar do tempo, na forma como encaramos ações e personagens — "Eles não se sentem heróis", dirá mais tarde o mesmo narrador, interpretado pelo ator uruguaio Enzo Vogrincic, ganhador de um Kikito no Festival de Gramado de 2022 por seu desempenho como um relutante craque do futebol em 9. A voz que ele toma emprestada é a de Numa Turcatti, que embarcou sem conhecer quase ninguém: não integrava a equipe de rúgbi, mas aceitou o convite de viagem feito por um amigo da faculdade de Direito. Numa tinha 25 anos — e morreu em 11 de dezembro de 1972, o 60º dia após a queda do avião. Seu papel simboliza tanto o desejo de Bayona e Vierci de tirar das sombras aqueles que não viveram para contar a história quanto a percepção, no grupo, de que todos eram importantes em uma situação mais do que extrema.
Como em O Impossível, J.A. Bayona ocupa o mínimo tempo possível com o antes — por coincidência ou não, nos dois filmes a tragédia acontece por volta do 13º minuto. A exemplo do título protagonizado por Naomi Watts e Ewan McGregor, o cineasta impressiona na recriação do choque, da queda e do desmembramento do avião. A partir daí, a natureza vai impor desafios dolorosos — ora físicos, ora psicológicos — a personagens como Nando Parrado (interpretado por Agustín Pardella), o moribundo que se tornou um obstinado pela vida. Não à toa, Daniel Fernández Strauch, que tinha 26 anos quando ficou preso na montanha e hoje, aos 77, é um engenheiro agrônomo aposentado, elogiou em entrevista à AFP a autenticidade de A Sociedade da Neve.
— Até a sensação de frio volta. É de um realismo total. Neste filme, as pessoas vão entender o que passamos — disse Strauch, que dividia com seus primos Eduardo e Adolfo "a tarefa mais horrível de todas": cortar a carne dos cadáveres.
Essa decisão precisou ser tomada quando os sobreviventes já estavam há sete dias e sete noites sem se alimentar.
— Sabe o que acontece quando ficamos sem comer? Nosso corpo seca, como uma planta. O cérebro começa a secar. Não dá para pensar! — explica o então estudante de Medicina Roberto Canessa, vivido pelo jovem ator argentino Matías Recalt.
É então que se dá a grande discussão de A Sociedade da Neve, cujos temas e dilemas transcendem a Cordilheira dos Andes. "Deus vai perdoar a gente?", pergunta um. "Deus pôs a gente nessa situação. Vai compreender que fizemos o possível", responde outro. "É só carne", afirma um. "De quem amamos", retruca outro. "Seria como doação de órgãos?", indaga um. "Para doação, tem de haver consentimento. É crime, a gente não tem esse direito", sustenta outro, provocando o protesto de um terceiro: "Não tenho o direito de fazer tudo o que eu puder para sobreviver? Quem vai me tirar esse direito?". A resposta está no silêncio.