O pessoal costuma dizer que não tem nada de bom na Netflix. Eu discordo: tem é muito filme ruim, daí a plataforma de streaming causa a impressão de que faltam atrações bacanas. É preciso garimpar um pouco, à procura de tesouros escondidos ou pequenas joias recém chegadas ao catálogo.
Fratura (Fractured), para mim, se enquadra nesse último caso. Trata-se de um suspense psicológico dirigido por Brad Anderson, o mesmo de Sessão 9 e O Operário (aquele em que Christian Bale está assustadoramente esquálido). A propósito, não o confunda com outros três cineastas de mesmo sobrenome: Paul Thomas Anderson (de Magnólia e Sangue Negro), Wes Anderson (de Os Excêntricos Tenenbaums e Grande Hotel Budapeste) e Paul W.S. Anderson (da franquia Resident Evil). Mas deixe-se confundir pela história que ele conta
(e sobre a qual não darei spoiler).
O quebra-cabeças começa em uma estrada que corre por uma paisagem ocre e cinza.
À medida que a trilha sonora – um piano dedilhado – fica mais tensa, a câmera vai se aproximando, frontalmente, do carro no qual um homem parece falar sozinho.
Até que "entramos" dentro do veículo e ouvimos que Ray Monroe (interpretado por
Sam Worthington, de Avatar e Fúria de Titãs) está discutindo com sua esposa, Joanne
(Lily Rabe, de American Horror Story), enquanto sua filha de seis anos, Peri, distrai-se com um aparelho eletrônico no banco de trás.
Embarquei de partida. Achei bem verdadeiro o flagrante daquele casal em crise — Jo se queixa de não reconhecer mais o homem com quem se casara seis anos antes,
e nesse meio tempo acabam as pilhas da diversão da filha, então os dois precisam parar de brigar e fingir que está tudo bem. Quem nunca?
Os diálogos também deixam entrever que Ray é um alcoolista em recuperação e um motorista que evita ultrapassar o limite de velocidade. São pistas de um passado traumático ou vislumbres
de um futuro próximo e pesado?
Brad Anderson cadencia toda essa sequência de abertura, nunca entregando ao espectador mais do que ele precisa para ficar aflito. Até que surge o episódio catalisador da trama, um acidente com Peri que faz os Monroe dispararem rumo ao hospital mais próximo.
Lá, novamente, o filme nos oferece uma situação com a qual muitos pais podem se identificar. Afinal, quando nossos filhos precisam de atendimento médico (de urgência ou não), cada segundo parece uma eternidade, os trâmites burocráticos soam como castigo infernal, e a troca de plantão provoca incógnitas – cadê o médico que estava nos atendendo? Quando alguém vai olhar de novo minha guriazinha? Pior ainda é para o pai que tem de esperar na recepção, já que apenas um responsável pode entrar com a criança.
Se o ambiente hospitalar é hostil para nós, brasileiros, que dispomos do SUS, imagine para os americanos, que não contam com uma cobertura pública de saúde. Daí que a fotografia do filme é opressiva, gelada. Quente, ali, só o sangue de Ray, mais e mais intrigado e desesperado diante da falta de informações sobre a tomografia que Peri foi fazer na companhia de Jo. É bem verdade que um celular poderia ter resolvido a coisa, mas o filme é inteligente em não mostrar nenhum celular. Pense que a história poderia ser "de época".
Chega um momento em que Ray passa a enxergar esse ambiente como mais do que hostil: perverso. (O diretor deve ter algum trauma de hospital, porque esse é seu terceiro filme em que o usa como cenário: Sessão 9 era sobre uma instituição psiquiátrica abandonada, e Refúgio do Medo adapta um conto de Edgar Allan Poe transcorrido em um hospício do final do século 19.) Os médicos e as enfermeiras estão escondendo algo. Ou essa é a percepção de um pai e marido preocupado?
Paulatinamente, Fratura vai dando peças que ajudam a completar o quebra-cabeças.
É possível que o público acostumado a títulos do gênero forme a imagem antes de seu final, mas isso não significa dizer que o filme é previsível. Desde que pegamos aquela estrada com os Monroe, intuímos bifurcações que poderiam haver no caminho.
Não é por serem conhecidas que deixam de ser desafiadoras, labirínticas, perigosas. Enfim: não me pareceu que Brad Anderson fez uma curva abrupta na direção rumo a um atalho improvável, mas sim que ele sabia exatamente para onde estava indo. E se o destino não agradar tanto a vocês, lembrem-se: o que importa é a jornada. A minha manteve-se tensa até o final.