Um filme da Colômbia está em cartaz nos cinemas de Porto Alegre (para ser preciso, é apenas em uma sala). Eu não sei vocês, mas a mera procedência, pouco habitual fora do circuito de festivais, já basta para despertar a curiosidade. Que ficou mais aguçada ao saber que Pássaros de Verão (Pájaros de Verano) quase disputou o Oscar de longa estrangeiro em 2019 – ficou entre os nove finalistas, mas acabou não entrando na lista dos cinco indicados da categoria.
Assistir ao trailer e ler um tantinho da sinopse foram suficientes para confirmar minha presença em uma das pouquíssimas poltronas ocupadas no fim da tarde do feriado de 7 de setembro.
O roteiro de cinema diz: no início da produção em massa de maconha na Colômbia, uma família de indígenas se envolve numa guerra pelo controle do tráfico de drogas.
O trailer dá fortes indícios de que o filme é muito mais do que uma história policial. Fica nítida a ambição antropológica dos diretores Cristina Gallego e Ciro Guerra (este, sim, concorrente ao Oscar por O Abraço da Serpente, de 2015). A partir do roteiro escrito por Maria Camila Arias e e Jacques Toulemonde Vidal, eles estendem o olhar e os ouvidos a rostos desconhecidos que falam uma língua desconhecida. Mas tudo soa estranhamente familiar, como se fossem as entranhas da América, inundadas pelo sangue indígena derramado pelo homem branco, cantando para nós sobre feitos e derrotas dos povos originários. E é desse encontro fatal com a chamada "civilização", desse enorme desmanche cultural, que trata Pássaros de Verão.
A temática é a mesma de O Abraço da Serpente, que mostrava o desafio das populações da Amazônia frente às missões catequizadoras e à exploração da borracha, no início do século 20. Pássaros de Verão avança no tempo – se passa entre o final dos anos 1960 e o começo da década de 1980 – e muda a geografia: troca as florestas pela desértica Guajira, o departamento mais ao norte da Colômbia. Os principais personagens são índios Wayuu já aculturados, mas que preservam uma série de tradições – por exemplo, a de confinar moças como Zaida (Natalia Reyes, que será vista em breve em O Exterminador do Futuro 6: Destino Sombrio) durante um ano até que possam ser apresentadas como mulheres à aldeia. Úrsula (Carmiña Martínez) é a matriarca do clã Pushaina e mãe de Zaida, com quem Rapayet (José Acosta) quer casar. Mas ele não dispõe de recursos para o dote exigido – vacas, cabras, colares. Com um amigo negro, Moncho, um alijuna (forasteiro), percebe uma oportunidade de ascensão no emergente mercado da maconha. Aproxima-se de americanos, alia-se a um primo produtor da erva, Anibal, e torna-se um exportador.
O retrato da riqueza e das conquistas alcançadas por Rapayet e Moncho não significa um abraço à serpente do narcotráfico. Pelo contrário: os diretores usam-no como símbolo de como o capitalismo pode ser predatório. O dinheiro afasta os Wayuu dos mitos, dos valores, como família e honra (come-se até cocô de cachorro em troca de uma bolada), e dos costumes que sempre garantiram sua sobrevivência – contra piratas, contra espanhóis, contra ingleses, contra todos, como dirá uma anciã. O dinheiro traz infortúnio, dissidência, tragédia. O arco dramático de Úrsula ilustra o rompimento doloroso com o lado místico: ela não mais consegue ver e interpretar sonhos.
Guerra e Gallego filmam a história de um modo naturalista que espelha a invasão estrangeira que por fim escurecerá os céus de Guajira. A câmera passeia entre os cenários sem cobrar solos de seu elenco, flagra os personagens concentrados em seus rituais, intromete-se em conversas que já estavam em andamento. É como se nós também estivéssemos invadindo seu espaço, varrendo as cores que marcam o início do filme e deixando para trás apenas a aridez e as ruínas. A diferença é que podemos sair de lá imbuídos da missão de difundir o folclore e a poesia visual a que fomos expostos. Eu estou fazendo a minha parte. Faça a sua: vá assistir a Pássaros de Verão antes que eles voem para longe do cinema.