Você já deve ter visto esse filme incontáveis vezes, involuntariamente: sempre que precisa apertar o cinto, o governo de plantão anuncia o corte dos supersalários. É a versão federal dos candidatos a prefeito e governador que apontam o corte de cargos em comissão e das verbas de publicidade como fonte de recursos para bancar as promessas extravagantes ou mesmo as mais ordinárias que fazem. Cortar os supersalários está, de novo, na prancheta dos ministros da Fazenda, Fernando Haddad, e do Planejamento, Simone Tebet.
A proposta é muito bem-vinda. O teto foi criado dentro de uma ideia romântica de que que nenhum servidor público deveria ganhar mais do que ministro do Supremo Tribunal Federal. Só que logo começaram a aparecer os penduricalhos que ficam fora do teto e a verdade é que o limite nunca chegou a ser aplicado de fato. Os supersalários vicejam no andar de cima, enquanto milhares de servidores públicos ganham valores tão irrisórios que precisam fazer bico para complementar a renda.
O que são supersalários? São aqueles que ultrapassam o teto, hoje fixado em R$ 44.008,52. Algum ingênuo poderá dizer que devem ser tão poucos os que ganham acima desse valor que a economia seria insignificante. Pois não é.
O governo não pode, simplesmente, decidir por decreto que a partir de amanhã (ou de qualquer dia) vai cortar tudo o que ultrapassa os R$ 44.008,52. Antes, é preciso regulamentar o teto salarial, criado em 2003 e nunca implementado verdadeiramente para todos os servidores. Por que agora seria diferente? Em 2021, a Câmara aprovou uma regulamentação, mas o texto retornou ao Senado e de lá não saiu mais.
Existe uma figura chamada “abate-teto” que é o corte do que extrapola o teto salarial. Mas, como o conceito é abstrato, quem se sente prejudicado recorre à Justiça. E o Judiciário é o poder que mais concentra contracheques inflados pelos ditos penduricalhos, chamados genericamente de verbas indenizatórias. O Congresso, além disso, está prestes a aprovar a volta do adicional de tempo de serviço, prevendo o pagamento de 5% a cada cinco anos de serviço, sem que esse dinheiro seja incluído no teto.
Quando se consulta os portais de Transparência do Judiciário e do Ministério Público (estadual e federal) é possível constatar que são raros os casos em que os seus membros não têm alguma verba indenizatória a encorpar a renda mensal. Um exemplo é a venda das férias. Como têm dois meses por ano, magistrados e membros do Ministério Público optam por “vender” um mês e receber a parcela em dinheiro. Isso sem contar os auxílios que se empilham e que também não contam para efeito de teto.
Terá o governo alguma força para mexer com os privilégios das “carreiras jurídicas”? Ou será mais fácil cortar no andar de baixo, restringindo o seguro-desemprego dos trabalhadores do setor privado? É necessário que sejam revistos os benefícios sociais concedidos sem critério e que acabam caindo nas mãos de quem não se enquadra nas regras, mas os “cortes estruturais” no andar de cima não podem ficar só nos discursos.