Se eu tivesse tempo para escrever um livro sobre a enchente de 2024 ela seria contada nas vozes das mulheres. Porque as mulheres descem aos detalhes. E não é que os homens sofram menos. Eles apenas são mais econômicos e parecem ter pressa. Eu faria como a bielorrussa Svetlana Aleksiévitch, Nobel de Literatura de quem ouvi uma conferência inesquecível numa das edições da Feira Literária de Paraty.
Svetlana liga o gravador para seus personagens falarem. E falam com a profundidade que o tempo de uma entrevista convencional não permite. Para quem não conhece a obra dessa mulher extraordinária, sugiro Vozes de Tchernobil e A guerra não tem nome de mulher.
Por isso, hoje, quero contar aqui a história de Solange Rodrigues, 72 anos, uma mulher de olhos brilhantes, que mora no Quarto Distrito. Solange tem alma de artista, mas não está entre os que têm direito às leis de incentivo à cultura ou mesmo ao socorro dos shows beneficentes. Porque só a família, os amigos e alguns conhecidos sabem que desde criança os pincéis eram seu melhor brinquedo, mas a vida deu voltas e ela nunca pode se dedicar à pintura, como gostaria se tivesse frequentado cursos e viajado para conhecer museus em outros países.
Solange retratou, em óleo sobre tela, a saga do Negrinho do Pastoreio, uma das lendas mais contadas e cantadas do Rio Grande do Sul. Nos fundos da casa, pintou um painel com a história do Negrinho açoitado pelo feitor, que termina acolhido por Nossa Senhora. Não que Solange seja monotemática. Seu repertório é amplo e inclui uma coleção de orixás.
Quando começou o movimento de revitalização do Quarto Distrito, Solange sonhou que seu Negrinho do Pastoreio poderia virar painel na parede de um edifício. Mas sem contatos no mundo da cultura e sem um estilo marcante como o de Kobra, ficou só na esperança de um dia ser descoberta.
Nos 10 anos que precederam a grande enchente de 2024, a rua de Solange alagou muitas vezes. Mas era a casa da família e os pais, Felipe e Leda, velhinhos, não queriam sair. Nesse tempo ela parou de pintar para se dedicar ao cuidado dos pais, que morreram antes de ver a casa tomada pela água barrenta.
As mudanças climáticas já tinham obrigado Solange a se endividar em janeiro deste ano, quando o temporal destelhou a casa e a prefeitura não forneceu as telhas prometidas. Em fevereiro ela pediu socorro à Rádio Gaúcha, porque estava cercada de lixo por todos os lados. Aos restos de árvores que caíram sobre seu terreno acumulavam-se detritos deixados por moradores sem noção. O prefeito Sebastião Melo estava ouvindo e mandou uma equipe recolher o lixo. Solange mostrou seus quadros ao funcionário da prefeitura e alimentou a esperança de ser descoberta como artista, não como vítima.
Veio a enchente de maio e a água levou quase tudo o que ela tinha. Salvaram-se os quadros, porque antes de sair às pressas ela conseguiu guardá-los na parte mais alta de um armário que agora se desintegrou. Por uns dias, Solange ficou abrigada na casa de uma irmã, mas voltou quando a água baixou para tentar salvar pelo menos as tintas. Não sobrou nada. Só as louças e as panelas.
Solange não sabe como recomeçar. Pensa em fazer uma vaquinha, mas como nunca pediu nada a ninguém, não tem ideia de como colocar a ideia em pé. Imagina que talvez possa rifar os quadros, mas como fazer? São nove e precisam ser vistos em sequência. Uma amiga que mora nos Estados Unidos gostaria de mostrá-los na Flórida. Tem certeza de que fariam sucesso. Mas ela não tem dinheiro para a passagem, Porto Alegre está sem aeroporto e as despesas do dia a dia batem à porta.
Pela primeira vez, Solange precisou de cesta básica. Olha para a frente e o futuro é um ponto de interrogação. Para tirar o barro do painel que conta a história do Negrinho passou a lava-jato e descascou a pintura. Vai restaurar, mas precisa de material. E espera que no meio da tragédia particular que está vivendo o Negrinho do Pastoreio saia do anonimato na casa do Quarto Distrito para onde ela voltou e não conseguiu dormir na madrugada deste domingo, porque chuva deixou de ser melodia para virar assombração.