Antes que alguém atire a primeira pedra com discursos recheados de hipocrisia e desinformação sobre o voto da ministra Rosa Weber, é preciso deixar claro que, na prática, o aborto é liberado no Brasil há muitos e muitos anos. Quem aqui escreve é uma mulher de 63 anos, mãe de um casal de filhos, que nunca pensou em fazer um aborto, mas não ignora a realidade das outras mulheres, sobretudo as que não têm acesso à informação sobre métodos anticoncepcionais.
O aborto segue sendo crime na letra fria da lei, mas é praticado em larga escala em consultórios assépticos, para mulheres que podem pagar, e em espeluncas insalubres, para as pobres. Os políticos, em sua maioria, preferem fingir que a lei é respeitada e que as moças de família levam até o fim as gestações indesejadas.
A ministra Rosa Weber sabe que seu voto, favorável à descriminalização do aborto até 12 semanas de gestação, não terá outro feito além de marcar posição e de abrir o debate necessário sobre um tema que remete a sofrimento. Aos 75 anos, Rosa colocou-se no lugar de mulheres em idade reprodutiva que se veem na difícil posição de decidir entre um aborto, correndo o risco de ser presa, e a continuação de uma gestação para a qual não se sentem preparadas, material ou psicologicamente.
O acordo que a ministra fez com o futuro presidente do Supremo, Luís Roberto Barroso, foi de pautar a votação no plenário, registrar seu voto, e se aposentar. O processo voltará para a gaveta, de onde não sairá tão cedo, porque os demais ministros não querem meter a mão nesse abelheiro. E porque Rosa, única mãe no Supremo Tribunal Federal, provavelmente será substituída por um homem que não tem o senso de urgência desse tema, que na teoria é tão diferente da prática.
Todos os anos, segundo a Organização Mundial da Saúde, cerca de 1 milhão de mulheres praticam abortos clandestinos no Brasil. Dessas, 200 mil recorrem ao SUS para tratar as sequelas de procedimentos malfeitos. Parte delas morre por infecção, hemorragia e outras intercorrências. Só esses números já justificam a necessidade de um debate maduro sobre o tema.
“Fomos silenciadas! Não tivemos como participar ativamente da deliberação sobre questão que nos é particular, que diz respeito ao fato comum da vida reprodutiva da mulher, mais que isso, que fala sobre o aspecto nuclear da conformação da sua autodeterminação, que é o projeto da maternidade e sua conciliação com todos as outras dimensões do projeto de vida digna”, escreveu a ministra, em um dos trechos do seu voto de 106 páginas.
Em outro, sentenciou: “A criminalização do ato não se mostra como política estatal adequada para dirimir os problemas que envolvem o aborto, como apontam as estatísticas e corroboraram os aportes informacionais produzidos na audiência pública”.
Rosa Weber poderia encerrar sua carreira de juíza no conforto da omissão, mas preferiu se expor. Ela que em todos esses anos não deu entrevistas, não falou fora dos autos e não fez performance diante das câmeras, optou por carimbar sua passagem pelo Supremo com um gesto de combate ao falso moralismo dos que imaginam eliminar o problema fazendo de conta que ele não existe.
Aliás
O Supremo não pode substituir o Congresso no papel de legislar, mas na pauta de costumes os ministros acabam por decidir no vácuo dos deputados e senadores, que se omitem por covardia, como fizeram com a união civil entre pessoas do mesmo sexo.