Deve ser por ter passado a infância em um lugar remoto do Rio Grande do Sul que me identifico tanto com a literatura de Gabriel García Márquez, especialmente com as fantasias de Cem Anos de Solidão. O dia em que o pai de Aureliano Buendía o levou para conhecer o gelo se equivale na minha memória ao dia em que meu pai voltou da vila de Campos Borges contando que o dono da Estação Rodoviária, Aurélio Marion, tinha comprado uma televisão. O que era uma televisão? Meu pai explicou da forma mais didática que encontrou:
— É um rádio em que a gente não ouve só a voz. As pessoas das novelas aparecem numa caixa de vidro, como se a gente estivesse vendo.
Impossível entender o que era aquilo. Os vizinhos iam à sede do distrito para conhecer a tal televisão, mas eu só fui conhecer a máquina do futuro um ano depois, quando passei no exame de admissão e fui estudar em Tapera, a cidade grande, que tinha luz elétrica e água encanada. Era 1971. Conheci na mesma época outras duas invenções das quais só ouvira falar: a geladeira e o fogão a gás. Gelo já era familiar, porque a distribuidora de bebidas entregava barras enormes, cobertas de serragem, para gelar a bebida servida nas festas e bailes da nossa pequena comunidade.
A tia Edit, com quem eu morava na casinha de zeladora do Ginásio Taperense, não tinha televisão, mas a generosa dona Laurinda Ferst permitia que os vizinhos se amontoassem na porta de sua casa para assistir a Irmãos Coragem, em preto e branco. Foi assim que conheci Tarcísio Meira, o João Coragem de sorriso como nunca se vira igual, e Glória Menezes, a mocinha que se multiplicava por três para ser Lara, Diana e Márcia.
Novela, até então, só conhecia pelo rádio. Era tão fascinada por aquele mundo que hoje, mais de meio século depois, ainda lembro que meus pais paravam diante do rádio para acompanhar as desventuras de Nair, a boazinha, e de Guiomar, a malvada que mandava afogar a sobrinha. Calúnia era o nome da radionovela. Gravei somente uma fala daquela trama. É da menina, a filha de Nair, ao ser jogada na água:
— Eu tô caindo, tio Amâncio. Me salva, tio Amâncio.
Na televisão, por mais borrada que fosse a imagem, Tarcísio era inconfundível. Glória me desnorteava, porque as mudanças físicas não eram muito claras, mas a interpretação permitia saber qual das três estava em cena mesmo quando o vento sacudia a antena e a imagem virava um borrão.
Meio século de convivência com Tarcísio e Glória, casal da ficção e da vida real. E eis que o coronavírus, esse pesadelo que nos atormenta desde 2020, separa os inseparáveis, um dia depois de darmos adeus ao Shazan, que foi como conheci o talentoso Paulo José. Dois grandes artistas que tiveram uma vida plena e viverão para sempre na pele dos personagens que encarnaram com maestria. Artistas não morrem: passam para outra dimensão.
Enquanto Glória se recupera da covid-19, torço para que encontre no amor de Tarcisinho e Mocita Fagundes forças para viver sem o homem que será sempre o seu par.