Documentos do Itamaraty obtidos pela CPI da Covid têm potencial para trazer mais problemas ao presidente Jair Bolsonaro do que a maioria dos depoimentos em que, protegidos por habeas corpus, os depoentes mentem ou tergiversam. Um deles, divulgado pelo jornal O Globo, reproduz uma conversa de Bolsonaro com o primeiro-ministro da Índia, Narenda Modi, intercedendo pela liberação de insumos para a fabricação de hidroxicloroquina por dois laboratórios privados, o Apsen e o EMS.
Não é novidade para quem acompanha as manifestações de Bolsonaro que desde 2020 ele apostou mais na cloroquina do que na vacina contra a covid-19 e segue defendendo o uso do medicamento, mesmo depois das pesquisas que comprovaram sua ineficácia. O que é novo no telegrama secreto do Itamaraty, cuja transcrição foi encaminhada à CPI, é a atuação direta, como chefe de Estado, em favor de duas empresas privadas para apressar a exportação dos insumos.
Membros da CPI consideram essa uma prova importante do envolvimento pessoal do presidente no estímulo à produção de um medicamento sem eficácia, depois de ter ignorado as sucessivas propostas da Pfizer para vender sua vacina ao Brasil, com preços mais vantajosos do que o país acabaria pagando por entrar atrasado na disputa pelo imunizante.
A ligação é do dia 4 de abril, quando diferentes pesquisas já haviam constatado a ineficácia da cloroquina no tratamento da covid-19. Cinco dias depois, Bolsonaro fez um agradecimento público à Índia pela liberação dos insumos, sem mencionar que o pedido era de laboratórios privados.
No telefonema, Bolsonaro diz ao primeiro-ministro da Índia que “temos tido resultados animadores no uso de hidroxicloroquina para tratamento de pacientes de covid-19" e pede a liberação de “importações de sulfato de hidroxicloroquina feitas por empresas brasileiras”.
Outro telegrama do Itamaraty, também revelado por O Globo, mostra que, em setembro do ano passado, quando o Brasil discutia a adesão ao consórcio global Covax Facility, o então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, ofereceu à Organização Mundial da Saúde o “compartilhamento de protocolo desenvolvido no Brasil para tratamento precoce da doença, fruto de conhecimento acumulado nas diferentes regiões do país”.
O general ponderou ao diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, que a conversação com a OMS seria mais eficaz “se os dois lados mantiverem perfil discreto", diz trecho do documento do Itamaraty. Nessa época, os estudos já indicavam que o tratamento da covid-19 com hidroxicloroquina era ineficaz.
O “pacote” do Itamaraty contém outro documento potencialmente comprometedor para o governo Bolsonaro. Esse documento mostra que, em 27 de agosto, a Pfizer procurou a embaixada brasileira em Washington para pedir uma resposta a sua oferta de fornecimento de vacinas.
Também não é novidade que o governo brasileiro ignorou sucessivas ofertas da Pfizer, em 2020, mas os documentos do Itamaraty reforçam os depoimentos tomados pela CPI e dão consistência à tese de que o governo Bolsonaro foi omisso e, com isso, atrasou o início da vacinação.