General de quatro estrelas, descendente de indígenas e acostumado à liturgia do poder, o vice-presidente Hamilton Mourão repetiu neste Dia da Consciência Negra uma afirmação típica de quem nunca sentiu na pele a discriminação que sofrem homens e mulheres pretos. Mourão classificou como “lamentável” o episódio em que João Alberto Silveira Freitas, um negro de 40 anos, foi espancado até a morte no estacionamento do supermercado Carrefour do Passo D'Areia, em Porto Alegre. Disse que,“a princípio a segurança estava totalmente despreparada para a atividade que tem que fazer”.
Mourão denota desconhecimento da realidade que vivem os negros e negras no Brasil na forma como respondeu quando foi questionado se havia racismo no assassinato que chocou o Brasil:
— Não. Para mim, no Brasil não existe racismo. Isso é uma coisa que querem importar aqui para o Brasil, não existe aqui.
Coisa que querem importar? Será que o vice-presidente nunca prestou atenção nas estatísticas sobre o assassinato de negros no Brasil? Sobre a desproporção entre brancos e negros nos dados sobre execuções na periferia do Rio de Janeiro? Será que nunca foi informado sobre as dificuldades dos negros para concorrer às melhores vagas no mercado de trabalho?
Para refletir sobre a realidade dos negros, seria conveniente que Mourão usasse algumas horas de sua agenda de vice-presidente para ouvir negros como os colegas que temos no Grupo RBS e que relatam os olhares de desconfiança que lhes são dirigidos pelos seguranças de um shopping center ou de um supermercado ou a forma como são tratados em uma abordagem da polícia. O vice-presidente pode reservar um tempo para os relatos sobre a dificuldade de conseguir emprego, de ser aceito pelos colegas da universidade, quando entram pelo sistema de cotas, de ser entendido quando se elegem para um cargo público.
Seria didático que o vice-presidente se inteirasse das ameaças de morte sofridas pela professora Ana Lúcia Martins (PT), de 54 anos, primeira vereadora negra da história de Joinville, em Santa Catarina. Que conversasse com a jornalista Maju Coutinho, um dos rostos negros mais conhecidos do Brasil, ou com Zileide Silva, experiente repórter que já o entrevistou tantas vezes, para saber dos preconceitos que enfrentam as mulheres negras.
Também seria pedagógico que o vice-presidente olhasse com atenção os vídeos do espancamento. E que focasse não apenas nos socos desferidos contra João Alberto, mas na apatia dos que assistem ao espetáculo de brutalidade mais preocupados em filmar do que em acudir. Nos vídeos, nota-se que quem pedem aos seguranças que parem simplesmente é ignorado, mas se todos tentassem evitar a tragédia, será que o final desta história não seria outro? E se o homem espancado não fosse preto, teria sido espancado até à morte diante da “autoridade” impassível da mulher que dirige a cena daquele documentário em tempo real?
Não é de hoje que Mourão advoga a tese de que não existe racismo no Brasil. Ele a usou em na campanha de 2018, para se defender da acusação de racismo, depois de uma declaração polêmica em Caxias do Sul, em que fez declarações consideradas de cunho racista, travestidas de aula de História:
— E o nosso Brasil? Já citei nosso porte estratégico. Mas tem uma dificuldade para transformar isso em poder. Ainda existe o famoso ‘complexo de vira-lata’ aqui no nosso país, infelizmente. Essa herança do privilégio é uma herança ibérica. Temos uma certa herança da indolência, que vem da cultura indígena. Eu sou indígena. Meu pai é amazonense. E a malandragem. Nada contra, mas a malandragem é oriunda do africano. Então, esse é o nosso cadinho cultural.
Diante da repercussão negativa, o então candidato a vice de Jair Bolsonaro desdobrou-se em explicações que convenceram seus eleitores, mas deixaram a impressão de que o general vive em outro Brasil.
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