No ostracismo desde que saiu da cadeia e sem chance de se tornar protagonista como líder da oposição, o ex-presidente Lula atravessou a rua para escorregar em uma casca de banana na outra calçada. Para criticar a política liberal do ministro da Economia, Paulo Guedes, produziu uma das declarações mais infelizes de sua carreira. Disse Lula: “Quando eu vejo alguns discursos dessas pessoas, falando, quando eu vejo, sabe, essas pessoas acharem bonito que tem de vender tudo que é público, que o público não presta nada… Ainda bem que a natureza, que a natureza, contra a vontade da humanidade, criou esse monstro chamado coronavírus. Porque esse monstro está permitindo que os cegos enxerguem, que os cegos comecem a enxergar, que apenas o Estado é capaz de dar solução a determinadas crises”.
Lula tem no currículo uma interminável lista de declarações estapafúrdias que vão desde a classificação de Pelotas como um “polo exportador de veados”, cuja publicação tentou impedir por medida judicial, até a megalomaníaca frase de que não há, na face da Terra, sujeito mais honesto do que ele. A diferença para esta afirmação, dada à revista Carta Capital, é que para reforçar sua posição política contra o liberalismo, o ex-presidente celebra o surgimento de um vírus assassino que já matou mais de 17 mil pessoas no Brasil (323 mil no mundo) e parou as maiores economias do planeta.
Ainda bem, Lula? Ainda bem que a natureza produziu um vírus monstruoso para provar que sua visão de economia está correta, senhor ex-presidente? Talvez o senhor esteja perturbado pelo isolamento ou pela sensação de irrelevância, já que o governo de Jair Bolsonaro é sua própria oposição, mas ainda pode se retratar.
Tenha um pingo de decência, senhor ex-presidente, e peça desculpas às famílias dos brasileiros que morreram e foram enterrados sem despedida, para evitar a contaminação. Peça desculpas aos pacientes recuperados, que desceram ao sétimo círculo do inferno quando estiveram entubados. Peça desculpas às famílias aflitas, que esperam sem poder fazer contato a notícia de evolução do estado de saúde dos parentes internados. Peça desculpas aos médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem e todos os profissionais que estão na linha de frente, tentando salvar a vida dos contaminados por esse vírus monstruoso que a natureza não criou para provar a necessidade de um Estado gigante.
Aproveite, senhor ex-presidente, e faça a autocrítica que até aqui se recusou a fazer, pelo superfaturamento consentido na construção dos estádios da Copa. Peça desculpas pela roubalheira na Petrobras e em todas as estatais aparelhadas no seu governo para servir a interesses de grandes empresários e de políticos. Peça desculpas pelo mensalão, que encheu os bolsos dos seus aliados de ocasião no primeiro mandato.
Pense, senhor Lula, o que seria o Sistema Único de Saúde se todo o dinheiro da corrupção no seu e em outros governos tivesse sido direcionado para equipar hospitais, remunerar profissionais da saúde e adquirir os insumos necessários à prestação de um serviço melhor para os brasileiros que dependem do setor público.
Não é o caso de dizer “Lula, por que não te calas?”, como disse o rei Juan Carlos, da Espanha, ao falecido Hugo Chávez, de quem o senhor foi amigo e admirador. Ex-presidentes podem e devem se manifestar, seja para ajudar na solução de crises, seja para mostrar que nada aprenderam com seus erros.
A vitória de Bolsonaro na eleição de 2018 tem muito a ver com sua insistência em ser candidato, mesmo estando com os direitos políticos suspensos por ser ficha suja, de acordo com a lei. Ao dividir o país em “nós contra eles”, o senhor abriu caminho para a eleição de um presidente inepto e desequilibrado. Sua declaração, no mesmo dia em que o país ultrapassou a barreira das mil mortes em 24 horas e que Bolsonaro deu gargalhadas ao sugerir cloroquina para a direita e tubaína para a esquerda, não é mera coincidência. Os dois estão desrespeitando os brasileiros porque, a seu modo e estimulados pelos bajuladores de plantão, consideram-se mitos. Não são. A História julga seus ex-presidentes pelos seus atos, pelas palavras e pelas omissões.