Sem filtro, o presidente Jair Bolsonaro mais uma vez deixou do lado a liturgia do cargo para se engalfinhar com um desafeto, o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, e acabou apelando para a crueldade na forma como tratou do desaparecimento do pai, dele, Fernando Santa Cruz, assassinado pela ditadura militar.
O pai desapareceu aos 26 anos de idade, quando Felipe tinha apenas dois anos. Com a declaração, Bolsonaro deu a entender que está disposto a revelar segredos que o regime militar guardou a sete chaves.
A sequência de frases que mereceu de imediato o repúdio de instituições como a Anistia Internacional e a Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris) denota desconhecimento das prerrogativas dos advogados. Acompanhe:
— Por que a OAB impediu que a Polícia Federal entrasse no telefone de um dos caríssimos advogados? Qual a intenção da OAB? Quem é essa OAB? Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, conto pra ele. Ele não vai querer ouvir a verdade. Conto pra ele. Não é minha versão. É que a minha vivência me fez chegar nas conclusões naquele momento. O pai dele integrou a Ação Popular, o grupo mais sanguinário e violento da guerrilha lá de Pernambuco, e veio desaparecer no Rio de Janeiro.
Goste-se ou não, está entre as prerrogativas dos advogados o direito de não revelar quem paga seus honorários. Bolsonaro nunca se conformou com a proteção da OAB ao advogado que defendeu Adélio Bispo, o homem que o esfaqueou em Juiz de Fora (MG) e que foi declarado inimputável pela Justiça, por sofrer de transtornos mentais.
Em resposta à manifestação do presidente, Santa Cruz disse "estranhar tal comportamento em um homem que se diz cristão". "Lamentavelmente, temos um presidente que trata a perda de um pai como se fosse assunto corriqueiro — e debocha do assassinato de um jovem aos 26 anos. Meu pai era da juventude católica de Pernambuco, funcionário público, casado, aluno de Direito. Minha avó acaba de falecer, aos 105 anos, sem saber como o filho foi assassinado. Se o presidente sabe, por "vivência", tanto sobre o presente caso quanto com relação aos de todos os demais "desaparecidos", nossas famílias querem saber", diz um trecho da resposta de Santa Cruz.
De fato, se o presidente sabe o que ocorreu com Santa Cruz e com outras pessoas que desapareceram durante o regime militar, deve abrir os arquivos que contêm essa resposta, até aqui sonegada dos familiares. Simplesmente carimbar como "terrorista" os adversários do regime e justificar a tortura e os assassinatos, como fez antes de ser presidente, afronta o Estado Democrático de Direito.
Na nota em que condena a manifestação de Bolsonaro, a presidente da Ajuris, Vera Deboni, termina com uma frase lapidar: "O exercício do mais alto cargo da estrutura pública brasileira exige decoro, serenidade e contenção verbal; a memória dos mortos no período autoritário brasileiro não pode ser vilipendiada; os governados do presente, todos eles, merecem respeito".
Confira a íntegra da manifestação do presidente da OAB nacional, Felipe Santa Cruz:
"Como orgulhoso filho de Fernando Santa Cruz, quero inicialmente agradecer pelas manifestações de solidariedade que estou recebendo em razão das inqualificáveis declarações do presidente Jair Bolsonaro. O mandatário da República deixa patente seu desconhecimento sobre a diferença entre público e privado, demostrando mais uma vez traços de caráter graves em um governante: a crueldade e a falta de empatia. É de se estranhar tal comportamento em um homem que se diz cristão. Lamentavelmente, temos um presidente que trata a perda de um pai como se fosse assunto corriqueiro — e debocha do assassinato de um jovem aos 26 anos. Meu pai era da juventude católica de Pernambuco, funcionário público, casado, aluno de Direito. Minha avó acaba de falecer, aos 105 anos, sem saber como o filho foi assassinado. Se o presidente sabe, por “vivência”, tanto sobre o presente caso quanto com relação aos de todos os demais “desaparecidos”, nossas famílias querem saber. A respeito da defesa das prerrogativas da advocacia brasileira, nossa principal missão, asseguro que permaneceremos irredutíveis na garantia do sigilo da comunicação entre advogado e cliente. Garantia que é do cidadão, e não do advogado. Vale salientar que, no episódio citado na infeliz coletiva presidencial, apenas o celular de seu representante legal foi protegido. Jamais o do autor, sendo essa mais uma notícia falsa a se somar a tantas. O que realmente incomoda Bolsonaro é a defesa que fazemos da advocacia, dos direitos humanos, do meio ambiente, das minorias e de outros temas da cidadania que ele insiste em atacar. Temas que, aliás, sempre estiveram — e sempre estarão — sob a salvaguarda da Ordem do Advogados do Brasil. Por fim, afirmo que o que une nossas gerações, a minha e a do meu pai, é o compromisso inarredável com a democracia, e por ela estamos prontos aos maiores sacrifícios. Goste ou não o presidente".