Quem nos vê de longe talvez imagine que os jornalistas, por conviverem diariamente com notícias trágicas, se acostumem à barbárie. Que tratem os crimes como números, sem pensar nos rostos que estão por trás das estatísticas. Engano.
Com 34 anos de profissão, conectada o tempo inteiro em canais de notícias, não perdi a capacidade de me indignar. Sofro quando uma criança morre atingida por bala perdida numa vila. Revolto-me quando uma pessoa de qualquer idade morre por falta de atendimento médico. Repudio todo e qualquer tipo de violência, principalmente a que envolve crianças. Se essa violência é praticada por um agente público a quem cabe o papel de promover a Justiça, escasseiam-me as palavras, porque as que me ocorrem são impublicáveis.
Nesta semana, fui a nocaute com a transcrição das falas do promotor de Justiça (sic) Theodoro Alexandre da Silva Silveira, captadas durante uma audiência judicial em Júlio de Castilhos, dirigindo-se a uma menina de 14 anos, abusada sexualmente pelo pai e que, depois de denunciá-lo, voltou atrás, provavelmente por pressão da família. Leio e releio as frases e tenho dificuldade de acreditar que tenham sido pronunciadas por um promotor, diante de uma juíza, a dra. Priscila Gomes Palmeiro. Nem em pesadelo imaginaria um promotor dizendo assim para uma adolescente: ''Pra abrir as pernas e dá o rabo pra um cara tu tem maturidade, tu é autossuficiente, e pra assumir uma criança tu não tem? Tu é uma pessoa de sorte, porque tu é menor de 18, se tu fosse maior de 18 eu ia pedir a tua preventiva agora, pra tu ir lá na Fase, pra te estuprarem lá e fazer tudo o que fazem com um menor de idade lá". Para quem não acompanhou a história contada em ZH, a audiência em que o promotor pronunciou essas palavras ocorreu durante a instrução do processo que tramitava contra o pai da adolescente, acusado de abusar da menina e de engravidá-la.
Transcrevo aqui o trecho do texto escrito pela repórter Adriana Irion:
"Quando a gravidez foi descoberta e o caso passou a ser apurado, a vítima contou a autoridades detalhes da violência sexual que sofria do pai e afirmou que a gravidez era decorrente dessas relações forçadas. Ela então obteve autorização judicial para fazer um aborto. Depois disso, quando ouvida novamente na Justiça, negou o abuso por parte do pai (supostamente pressionada pela família). Foi isso que causou a irritação do promotor na audiência, ocorrida em 2014. A adolescente estava sendo ouvida como vítima. O processo contra o pai seguiu tramitando e ele foi condenado pela Justiça de Júlio de Castilhos a 27 anos de prisão por estupro. Um exame de DNA no feto comprovou que o bebê era dele. A defesa do pai recorreu da condenação ao Tribunal de Justiça".
O promotor disse mais, conforme acórdão da 7ª Câmara Criminal, referindo-se à autorização dada para o aborto: "Tu teve coragem de fazer o pior, matou uma criança, agora fica com essa carinha de anjo. Eu vou me esforçar o máximo pra te pôr na cadeia. Além de matar uma criança, tu é mentirosa? Que papelão, hein? Vou me esforçar pra te ferrar, pode ter certeza disso, eu não sou teu amigo".
Pobre menina tantas vezes vítima. Primeiro, vítima de estupro, um dos crimes mais vis a que uma mulher de qualquer idade pode ser submetida. Para agravar, violência sexual praticada pelo pai, que deveria protegê-la. Grávida desse pai monstro aos 13 anos de idade, obteve autorização legal para fazer um aborto, procedimento traumático para uma adolescente. Vítima de uma família estúpida que a forçou, segundo o Conselho Tutelar, a negar a acusação contra o pai. Por fim, vítima de um promotor cruel, que a humilhou diante de uma magistrada omissa.
Perguntas que me atormentam desde a tarde de quinta-feira, quando li a história dessa menina:
– Que punição terão os personagens desse drama?
– Que sonhos sonhará uma adolescente mutilada física e psicologicamente pela família e pelos agentes públicos que deveriam fazer parte da rede de proteção?
– Como terá sido o sono do promotor Theodoro e da juíza Priscila antes que essa história escabrosa viesse a público?
– Que sonhos sonharão o promotor e a juíza agora que os diálogos foram revelados?
– Será que algum colega sugerirá que o promotor e a juíza processem por dano moral quem expressar sua revolta nas redes sociais ou em um texto de jornal?
O desembargador José Antônio Daltoé Cezar, um magistrado que sempre zelou pelas crianças e adolescentes, propôs: "Transitada em julgado esta decisão, seja encaminhada cópia deste acórdão à vítima e a seu representante legal para que se cientifique que a 7ª Câmara Criminal lamenta profundamente a forma como foi ela recepcionada pelo sistema de Justiça, e que tem ela, se quiser, o direito de postular indenização pecuniária junto ao Promotor de Justiça, uma vez que mais do que falta grave, agiu este com dolo ao lhe impor ilegais constrangimentos".
A reportagem de ZH informa: "A desembargadora Jucelana Lurdes Pereira dos Santos destacou que relatórios do Conselho Tutelar indicaram que a vítima foi 'induzida (pela família) a retratar-se', ou seja, a negar envolvimento do pai nos abusos. 'E isso lhe custou uma inaceitável humilhação em audiência, pois o promotor a tratou como se ela fosse uma criminosa, esquecendo-se que só tinha 14 anos de idade, era vítima de estupro e vivia um drama familiar intenso e estava sozinha em uma audiência. Aliás, a menina necessitava de apoio de quem conhece estes tristes fatos da vida e não de um acusador, pois a função do promotor é de proteção da vítima. O pior de tudo isso é que contou com a anuência da magistrada, a qual permitiu que ele fosse arrogante, grosseiro e ofensivo com uma adolescente. Um verdadeiro absurdo que necessita providências', escreveu em seu voto a desembargadora."
Obrigada, desembargadores Daltoé e Jucelana por nos permitirem continuar acreditando na Justiça.