O paulista Rafael Zimerman havia se mudado para Israel fazia cinco meses em 2023 quando, na madrugada do dia 7 de outubro, se tornou alvo do terrorismo do Hamas. Um dos sobreviventes do ataque, o jovem está em Porto Alegre para palestras sobre a tragédia e o antissemitismo.
Onde você estava quando começou o massacre?
Na festa, um dos primeiros lugares atacados. Fui para a festa com o gaúcho Ranani Glazer e a namorada dele à época, a Rafaela Treistman. Um detalhe curioso: a organização só enviou a localização exata da festa duas horas antes do evento, por questões de segurança. Quando eu recebi a mensagem, na sexta-feira à noite, falando que era bem próximo de Gaza, até questionei o Ranani: é seguro? Nunca tinha chegado tão perto da Faixa de Gaza e ele me comentou que na verdade era comum ter festas lá, que não havia problemas.
Qual era a distância da fronteira com Gaza?
Uns 10 quilômetros, era bem próximo mesmo, eu não sabia que era tão perto assim e se soubéssemos o que ia acontecer...
Como você percebeu que o ataque havia começado?
Começou em torno das 6h30min de sábado. A festa iria até as 16h. No momento que começou, eu estava sozinho na frente do palco, estava dançando. Comecei a ouvir barulhos como se fossem fogos de artifício. Bem rápido me veio à cabeça: "A gente está numa festa aberta, e em Israel não é comum ter fogos de artifício, em uma rave também não. Mas foi muito rápido para pararem a festa, e o DJ pegou o microfone e falou em hebraico: "código vermelho". Naquele momento me agachei, fiz posição de defesa e olhei para um lado, olhei para o outro e cada um estava com uma reação: tinha gente correndo, filmando, chorando. Naquele momento já deu para perceber que não era algocomum, porque a quantidade de mísseis que víamos passando sobre a nossa cabeça era muito grande.
E o que você fez?
Fiquei um minuto agachado e saí correndo em direção à barraca na qual a gente tinha deixado nossas coisas. Encontrei o Ranani e a Rafaela. A primeira coisa que o Ranani falou foi: "Precisamos encontrar um bunker". Saímos correndo em direção à estrada, bem próxima da festa, começamos a pedir carona para os carros que estavam passando. Um casal que estava na festa parou o carro e entramos voando. Por ser uma cidade muito próxima de Gaza, na estrada, em pontos de ônibus, há bunkers. Paramos em um bunker que ficava a dois minutos da festa, fomos os primeiros a chegar. Era muito pequeno, ficamos no fundo. Confortavelmente cabiam 15 pessoas, no final tinha 40. Já não dava para respirar.
Em que momento os terroristas chegam?
Como só sabíamos que era um ataque aéreo, eu me senti seguro (no bunker). Depois de uns 20 minutos, eu estava encostado na parede e começo a sentir um tiro vindo nas minhas costas, depois outro, só que eles não atravessavam a parede do bunker. Depois, uma granada. Virou um desespero lá dentro: as pessoas pedindo para fazer silêncio, como se os terroristas não fossem ouvir. Coloquei minha mão sobre o Ranani e a Rafa, e comecei a rezar. Comecei a ouvir vindo do lado de fora uma voz feminina, era uma policial, descobri depois: ela começou a falar no rádio que não conseguiria aguentar, depois de muita troca de tiro. Começo a ouvir, como se fosse do meu lado, vários tiros e o grito que eu não desejo a ninguém ouvir nunca na vida. Os terroristas gritando "Allahu Akbar" ("Deus é grande"), em árabe. Sabia que, quando os terroristas faziam atentados, eles gritavam isso. Era um bunker sem porta, então a única proteção que tinha era aquela policial, e ela havia morrido. Você ouve aquele grito e sabe que já era, que não tem para onde ir, não tem o que fazer. Eu tinha entendido que era a hora de todo mundo morrer.
Em 30 segundos, eu não conseguia respirar. Imagina o caos que virou dentro do bunker
Eles entraram no bunker?
A primeira coisa que eles fazem é tacar um gás. E o pessoal lá dentro fica sem respirar e (busca) sair do bunker. É uma armadilha, mas poucas pessoas saíram. A maioria ficou lá dentro. Em 30 segundos, eu não conseguia respirar. Imagina o caos que virou dentro do bunker, as pessoas que estavam mais na frente tentando ir para trás. Uma menina inclusive mordeu a minha costela, arrancou minha carne, até hoje eu tenho a marca. Ela entrou em desespero. A Rafaela estava sentada e começou a gritar: "Eu tô morrendo". O Ranani fez uma cara de que precisava fazer algo. A cena vem na minha cabeça muito clara, dele atravessando um mar de gente e indo pra frente, basicamente na saída do bunker. Logo depois, os terroristas começaram a jogar granadas, do tipo que solta estilhaços de vidro, pregos. Eu ficava de olhos fechados, sentia os estilhaços batendo em mim. Até hoje tenho várias feridas, mas a dor psicológica é tão grande, o medo é tão grande, que você nem sente a dor física. Quando olhei para o lado, acabei vendo o Ranani sendo atingido e agonizando de dor. Vi o meu amigo morrer. Para mim, era questão de tempo pra acontecer comigo. Depois de várias granadas, eles jogaram coquetel Molotov, e entraram atirando. Desmaiei e, quando acordei, já estava embaixo de vários corpos.
Quando você acordou eles já tinham ido embora?
Eu não sabia, não tinha coragem de sair de lá. Quando tacaram gás, a primeira imagem que veio na minha cabeça foi de um judeu esquelético indo para a câmara de gás, parece que eu vivi isso em outra vida. Pedir a Deus para não morrer sem ar, que fosse por uma granada, um tiro, rápido. Fiquei quase cinco horas. Já acordei fingindo de morto. Comecei a rastejar por cima dos corpos. Um detalhe que me pega muito é que, enquanto eu estava indo em direção à entrada, vejo um celular. E ele começa a tocar, então eu começo a ver o brilho dele, de olho fechado, estava muito escuro. Ouvi o som e, no desespero, peguei esse celular e joguei longe, na parede. Fiquei com medo que vissem o celular e me matassem. É muito louco pensar que provavelmente era um pai ou uma mãe ligando para o filho ou para a filha, e a pessoa estava morta do meu lado.
Havia pessoas junto contigo que sobreviveram?
Quando cheguei perto da entrada, puxei o ar e, quando eu soltei, na hora fiz xixi, de alívio, de estar respirando. Vi muita coisa, vi gente pegando granada e jogando de volta, gente agonizando de dor, o cheiro era insuportável. Quando fui saindo do bunker, a primeira cena que eu vi foi uma fogueira: pegaram os jovens que estavam comigo e colocaram fogo, vivos. Sentei do lado do bunker, e a Rafa saiu logo depois gritando o nome do Ranani, "O Ranani morreu". No final, descobri que sobreviveram mais três pessoas. De quarenta pessoas no bunker, sobreviveram nove.
Como falar de paz diante de tanto ódio?
Eu presenciei o pior da humanidade, eles riam enquanto faziam aquilo. Se eu tiver ódio, se eu quiser vingança, vou ter uma vida infeliz. Saí de lá muito agradecido por estar vivo. Não vou mudar o mundo, mas eu consigo inspirar as pessoas que estão ao meu lado, eu consigo mudar a mim mesmo e a quem está ao meu redor. No final, a vida é um sopro, foi isso que eu descobri, eu estava dançando e uma hora depois tentaram tirar a minha vida da pior forma possível. Sou uma pessoa que quer viver, alegre, feliz, que é amada, que ama. Eu não vou fazer a paz no Oriente Médio, mas eu vou espalhar que a paz é o caminho certo para a vida.